Pensar a Música #2: As ficções da pop


Pode-se dizer que a pop é muito mais do que música. É o drama, a rivalidade, o statement, o flirt, o escândalo, e por vezes a história inflamada que não nos deixa dormir de noite. Mas quanto terá de verdade?

A boa música pop deveria ser aquela que vive da força da sua composição e não do seu enredo, mas continua a ser comum gravitarmos mais em torno da forma do que do conteúdo. Se ao menos esta não nos fosse impingida como um produto publicitário, não seria tão desacredita e olhada de lado por aqueles que procuram canções com fundo de verdade feitas por pessoas reais. 

Olhemos por exemplo para o caso recente de "Señorita", flamejante dueto entre Shawn Mendes e Camila Cabello que se evidencia como um dos hits deste Verão, completamente erguido no fabricado romance entre ambos e de uma tentativa esforçada de fazer o "Havana 2.0" acontecer. Se lhe retirarmos o peso mediático, sobra uma canção sólida que funcionaria em qualquer contexto porque é aditiva o suficiente. Mas parece que conferir credibilidade à marca #shawmila é mais importante do que sustentar a carreira de ambos somente pela força das canções.

Isto leva-nos a uma reflexão mais profunda, acerca daquilo que os artistas connosco partilham tanto nas suas obras como nas redes sociais - será que espelha aquilo que realmente são ou apenas a forma como pretendem ser percepcionados? Não é que todos forjem vidas e memórias falsas, mas há fortes indícios para acreditar que a vida de músico não é tão entusiasmante quanto um feed de instagram pode dar a entender: os relacionamentos tóxicos, as férias na Sardenha e as variações de humor podem também ser encenados. Que é feito das horas infinitas passadas no estúdio, em aviões e autocarros de digressão, dos ensaios e do vagaroso processo de criação?

No fundo o que é vertido para a arte pode muito bem ser fruto da imaginação. Billie Eilish, figura de proa da geração Z, defendia em início de carreira que achava ser possível escrever canções sobre praticamente tudo, mesmo sem ter passado pelas experiências descritas, porque é isso que um bom contador de histórias fará. E só assim se explica ter composto aos quinze de idade um tema que retrata o sentimento de culpa por ter assassinado os seus amigos e colocado os respectivos corpos na mala do carro - exactamente o tipo de narrativa ficcionada que enaltece as canções.

É precisamente da mesma tónica ficcionada que vive a primeira metade da carreira a solo de Beyoncé. Não poderemos acreditar que cantou canções como "Irreplaceable" ou "Best Thing I Never Had" de um lugar autêntico quando tinha um relacionamento estável e duradouro com Jay-Z. Antes porque se pretendia tornar na voz de uma geração que facilmente se identificaria com essas temáticas. Mas vejam como o caso mudou de figura quando passou a cantar sobre os reais problemas que a afectavam no homónimo de 2013 e em Lemonade (2016): a depressão pós-parto, a infidelidade do marido, o orgulho na herança afro-americana. E o certo é que esses dois álbuns condensam a sua melhor música de sempre.

Cada um que escolha o enredo que ache que consegue arcar, desde que este não se sobreponha à música e ao caminho que é suposto traçar. Lá que não fazia nada mal um pouco mais de transparência e verdade na forma como a pop é entregue e veículada, lá isso não fazia. Mas essa é também uma narrativa a que escolhemos pertencer, para o bem e para o mal.

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