2022, Um Balanço Sónico- As Canções Internacionais


O ano do escriba traduzido em vinte e cinco canções: 

1º Beyoncé- "Summer Renaissance"- A última volta no carrossel de Renaissance estende a passadeira ao vulto de Donna Summer enquanto nos lança numa regeneradora e esfuziante celebração das heranças house, disco, vogue e ballroom que percorrem o disco, arrumando de vez qualquer angústia pandémica escondida no armário. Assim renasce o Verão em nós, uma e outra vez. 

2º Sabrina Carpenter- "Read Your Mind"- Para todos os efeitos, Sabrina ainda é uma estrela pop série B, mas continua com os seus rasgos de genialidade pop pura, mesmo sem trabalhar com produtores de topo. Veja-se o caso deste "Read Your Mind", single platónico de Emails I Can't Send sobre as repercussões da indecisão crónica de um parceiro, decorado à melhor moda de "Lovefool" dos Cardigans. Nada menos do que excelência pop. 

3º Carly Rae Jepsen feat. Rufus Wainwright- "The Loneliest Time"- É impressionante pensar que Carly continua a lançar diamantes da lavra de "Run Away with Me" ou "Julien" ao longo da sua carreira. Mas precisamos de chegar ao minuto 2:52 para percebermos que, de facto, esta é capaz de ser a jóia da coroa de todo o seu percurso: um êxtase que não pode ser contido - necessita de ser gritado - a ópera disco que ruma às estrelas e desemboca numa ginga épica, ou a perfeita alquimia com Mr. Wainwright. Sim, isto é o nirvana. 

4º Sam Smith feat. Kim Petras- "Unholy"- A melhor intervenção pop do ano trouxe também um dos hits mais esmagadores e curiosos dos últimos doze meses. Ninguém esperava um hino devasso, obscuro e muito menos hyperpop vindo de Sam Smith, ou que a também inesperada boleia de Kim Petras lhe trouxesse o primeiro hit da carreira, depois de cinco anos a dar-nos pérolas na obscuridão. Milagre pop, feliz acaso ou marketing certeiro, mas no final do dia isto é um arraso de canção. 

5º Elton John & Britney Spears- "Hold Me Closer"- Há um peso tremendamente emocional no encontro geracional entre estes dois vultos: o facto de ser o primeiro inédito de Britney em seis anos. De combinar três temas do baú de Sir Elton para dar vida a algo novo, com significado e substância no tempo presente. Ou o simples facto de dois gigantes combinarem forças, quando já não têm nada a provar a ninguém, se não a eles mesmos. É como o beijo e o abraço que nos conforta e faz seguir em frente. E estamos verdadeiramente gratos por isso. 

6º NewJeans- "Hype Boy"- One, two, three, four. O kpop é cada vez menos exclusivo dos BTS ou das Blackpink, e é graças a debutantes como as NewJeans que renasce e ganha tracção internacional a cada novo dia. "Hype Boy" soa a paixão colegial, crush assolapado e pop hormonal com laivos de house tropical e future bass. Ouro líquido. 

7º Sabrina Carpenter- "Fast Times"- Quando parecia que tínhamos perdido Sabrina para o sensacionalismo do showbiz ou para as canções pop midtempo, eis que surge "Fast Times" a anunciar o quinto álbum com a terceira mudança metida: pop uptempo com balanço disco e break de guitarra eléctrica, sobre aceder a impulsos românticos em pleno caos moderno. Junta-se a "In My Bed" e "Read Your Mind" no pódio de momentos de ouro da sua discografia.

8º Charli XCX- "Baby"- Nunca esperámos ver nascer o dia em que assistiríamos a Charli XCX a fazer new jack swing e electro funk à boa moda de Miss Janet nos anos 80, com coreografia sensualona e visual de femme fatale a condizer. Mas aconteceu em plena era de pop exímia de Crash - e foi absolutamente incrível. 

9º Beyoncé- "Break My Soul"- O primeiro avanço de Renaissance esteve para o solstício de Verão de 2022 como "Solar Power" de Lorde esteve para o de 2021: ambos a marcar um novo e refrescante capítulo no percurso das suas autoras, e a brindar também a aurora de um novo despertar em nós. "Break My Soul" é Beyoncé em pleno modo diva house, com a sirene Big Freedia num ombro, e coro gospel congregador no outro. Nas mãos, o ceptro que nos haveria de libertar da pandemia de uma vez por todas. 

10º XG- "Mascara"- Que torpedo foi este, mesmo? Oriundas do Japão, mas sediadas na Coreia do Sul, as Xtraordinary Girls chegaram com movimentos de ninja em "Tippy Toes", mas firmaram estacas no mercado internacional com a força letal deste "Mascara", que aplica os ensinamentos de Lesley Gore em "It's My Party" sobre como evitar rapazes tóxicos numa colossal produção electro-hop. Ainda não recuperámos desde então.

11º Camila Cabello feat. Willow- "Psychofreak"- Camila ainda não consegue produzir um álbum coeso do início ao fim à tentativa nº3, mas vai manifestando ocasionais rasgos artísticos. Como este que bafejou "Psychofreak": trip hop/dark pop sobre saúde mental que recupera episódios do seu tempo com as 5H ou do relacionamento com Shawn Mendes. Willow surge assombrosa como eco das inseguranças de Camila, inaugurando pelo meio um novo género a que convém chamar emo latino. 

12º IVE- "After Like"- Ainda mal refeitas de gatinhar, as IVE encontram ao terceiro single o seu hit de assinatura: disco pop/house mirabolante que não só tem o arrojo de samplar "I Will Survive", como ainda de lhe espetar um rap por entre as suas linhas melódicas. O pó de estrela é abundante nesta. 

13º NewJeans- "Attention"- Há poucas formas de conseguir uma estreia tão impactante como esta: elas não tinham um conceito nem um grande orçamento, só a frescura da juventude e uma canção quase de "recreio" tão airosa como a brisa primaveril - e fizeram virar cabeças. A toada noughties é real, o groove nu-R&B também. Tão simples, tão encantadora.  

14º Charli XCX- "Used to Know Me"- Samplar "Show Me Love" de Robin S. é o equivalente a comer o pecado capital na arte da samplagem no universo pop, a menos que ao leme estejam Charli XCX e Dopamine. Manifesto eurodance a servir de quinto e último single de Crash, funciona tanto como kiss-off a um ex como à editora - Atlantic Records - da qual está agora livre. Abaixo a opressão, viva a liberdade!

15º Tinashe & Channel Tres- "HMU for a Good Time"- Tinashe só teve que lançar a edição deluxe do último 333 (2021) e incluir esta obscura e vanguardista pérola avant-house para ganhar o ano. Mas fez mais: ilustrou-a com um vídeo que presta homenagem a "Me Against the Music" de Britney, inscrevendo mais uma linha na sua já longa lista de contribuições admiráveis para a cultura pop do nosso tempo. 

16º Disclosure feat. Raye- "Waterfall"- A dupla de irmãos britânica só precisou de um lançamento díptico para deixar a sua marca em 2022. O melhor deles está aqui: não só melhor do que qualquer single do último Energy (2020), como capaz de ombrear com os momentos garage mais celebrados da sua discografia. Assinalou também o início da redenção de Raye enquanto artista independente, e foi bastante bonito de se ver. 

17º The 1975- "Happiness"- Todos os álbuns do quarteto têm o seu momento pop luminoso. Por sorte, Being Funny in a Foreign Language tem pelo menos quatro - e "Happiness" é o mais arrebatador. Parece tudo uma grande jam session disco pop com Jack Antonoff ao comando, uma em que se versa sobre amor e perda, e como nos transformamos e reencontramos em função de ambos. 

18º Le Sserafim- "Antifragile"- É em canções como esta que pensamos quando nos referimos à etiqueta k-pop como abrangente e infindável. Da sofisticação e pop minimal de "Fearless" para este banger reggaeton de chispas nos olhos, a diferença é abismal - outro grupo que fez o seu debute apenas este ano, mas que já apresenta argumentos fortíssimos. 

19º Christina Aguilera- "La Reina"- A segunda incursão pela língua espanhola da carreira de Xtina provou ser uma decisão mais do que acertada, com resultados surpreendentes. La Fuerza, o primeiro dos três EPs editados ao longo do ano, provou ser o mais estrondoso e versátil. A diva tem-nos aos seus pés quando o decide encerrar com uma monumental ranchera que ergue o dedo do meio ao patriarcado. Soltam-se lágrimas. Chovem rosas. Desabam aplausos. 

20º Ava Max- "Million Dollar Baby"- O denominado 'Max cut' já pertence ao passado, mas Miss Ava continua empenhada em manter viva a tradição eurodance dos noughties. "Million Dollar Baby" foi o seu hino reinante de 2022, pop triunfante sobre enterrar a tristeza e o coração partido e emergir como heroína da noite, a que ajuda a incorporação do sample de "Can't Fight the Moonlight" de LeAnn Rimes. Deixem a fera à solta.

21º Calvin Harris, Justin Timberlake & Halsey- "Stay with Me"- É um bocadinho inconclusivo o veredicto sobre qual terá sido a canção do Verão, mas mérito seja dado a Calvin Harris por ter incluído duas entradas: "Potion" e este "Stay With Me", funk/disco pop para quando o sol atinge o zénite, quando desce no horizonte ou para quando a noite cai e dá lugar a serões tropicais inesquecíveis. Halsey surpreende pela leveza, enquanto JT cumpre como sempre - deveria ter sido um hit de proporções consideráveis.

22º FKA twigs feat. Rema- "Jealousy"- Não esquecer que a mixtape Capri Songs foi uma das boas surpresas do ano. Um registo mais solto e livre que permitiu a FKA twigs testar novas cores e formas, onde "Jealousy" pontifica: intoxicante construção dancehall de tempero afrobeat pontuado pela participação do nigeriano Rema, que desliza como mel pelos ouvidos. 

23º Benee- "Beach Boy"- Há mais vida para lá de "Supalonely". Cartão de visita do terceiro EP da neozelandesa, trata-se de uma produção pop meio jangle com o cunho de Greg Kurstin, sobre encontrar paz na solidão, mas querer ao mesmo tempo a companhia casual de outro alguém. Como a doce brisa de um dia quente de Primavera que nos entra pelas janelas.

24º Rosalía- "CUUUUuuuuuute"- Rodízio de sabores e transgressões, que ajuda a compreender o porquê de Motomami ser um dos álbuns essenciais do ano que agora termina. De ambiência club e cyberpunk, percorre mutações de piano dolente e percussões tribais, derivativas do funk brasileiro. Deus no céu, e Rosalía ao comando no mundo terreno. 

25º LF System- "Afraid to Feel"- O Verão de 2022 fica marcado pelo revivalismo house no Reino Unido, do qual "B.O.T.A" de Eliza Rose e este inolvidável "Afraid to Feel" dos escoceses LF System são os principais responsáveis. Tudo o que bastou foi um sample soul pegadiço dos anos 70, manipulações vocais e de tempo, et voilà, aí tívemos o nosso maior hit de dança do ano, já clássico intemporal do novo milénio. 

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