Wolf Alice no Coliseu de Lisboa: Silêncio, Caos e Devoção


Há muito que me acostumei a retirar da equação quando escrevo sobre músicas, álbuns ou concertos. Porque, efectivamente, sou eu que estou ali a assinar aquelas linhas e acabo por conseguir que estas reflictam a minha personalidade. Mas para este texto em particular não quero que assim seja - porque acho que vai enriquecer muito mais se contado de uma perspectiva íntima e sentimental.

Cheguei relativamente tarde aos Wolf Alice. E com tarde refiro-me a Fevereiro deste ano. Conheço-os desde que se estrearam no formato longa-duração com My Love Is Cool (2015), mas do pouco que escutei não me mereceram grande atenção e afecto. Até que dei de caras com "Don't Delete the Kisses": uma canção magnífica sobre acharmos que não fomos feitos para viver um romance e percebermos que afinal há um outro alguém no mundo que o tornará possível. É confessional, íntima e profundamente imersiva. Em suma, o tipo de canção em que queremos viver para todo o sempre. 



Atrás vieram a passada pop-funk de "Beautifully Unconventional" e o nervo punk rock colérico de "Yuk Foo". Quando dei por mim, estava a mergulhar em Visions of a Life e a compreender por fim a razão de serem aclamados como a melhor banda britânica da actualidade. O que mais me agradou, para além da textura infindável das canções, foi como o grupo construiu uma obra tão elástica - escutam-se ecos de dream pop, shoegaze, grunge, pop, psicadelismo ou noise rock - sem comprometer a coesão do registo. É facilmente o meu álbum favorito do ano, ainda que fora do calendário.

De lá para cá houve um concerto no Alive que perdi por circunstâncias normais da vida. Zero de remorso a registar, saliente-se. Mas os promotores nacionais tratariam de agendar uma outra visita que se materializou na passada quinta, 1 de Novembro, no Coliseu de Lisboa. Não pensei duas vezes: era a única forma de retribuir oito meses de comunhão e consolo ao som das suas canções. Nem o facto de estar entregue à minha própria companhia me demoveu: se há algo que o quarto de século me ensinou foi que não vale a pena abdicar de momentos irrepetíveis por timidez ou inibição social. No final, quem perde somos só e apenas nós. 

Na minha (quase sempre) encantadora ingenuidade, achei que chegar meia hora antes do início do concerto era já um bocado arriscado para garantir um bom lugar no sempre concorrido Coliseu. Afinal, estávamos diante da banda que tinha acabado de arrebatar o Mercury Prize pelo já citado e aclamado segundo álbum do seu percurso. Não contei mais de 50 cabeças no dito círculo principal. Poderia ter furado a escassa falange até às grades da primeira fila, mas não só não me achei digno como alimentava a ideia de que volta e meia poderia rebentar um moche (pesadelo #124 do escriba) em "Yuk Foo" - logo a segunda do alinhamento - e nem por sombras ia estar lá metido.



Deparar-me com um cenário tão desmotivador fez-me esmorecer um bocadinho, mas principalmente fez-me sentir triste e preocupado com aquilo que a banda ia encontrar quando surgisse em palco. Pudera, concertos em solo nacional às 20h em pleno feriado com promessa de ponte e marcados com pouco mais de um mês de antecedência, só para os U2 da vida. E, convenhamos, um Coliseu dos Recreios para os Wolf Alice nesta altura da sua carreira foi demasiado precoce (e ambicioso).

Passavam trinta minutos da hora marcada quando Ellie, Joel, Joff e Theo ocuparam as suas posições em palco. E felizmente que o recinto estava um nadinha mais composto. O tédio da espera evaporou-se logo aos primeiros acordes de "Your Loves Whore". À beira do palco rebentava o êxtase: eis que se mostrava a diminuta mas aguerrida massa de fãs da banda. Abençoados sejam. "Yuk Foo" serviu-se de rajada e não houve surtos de cólera a registar e "You're a Germ" não deu descanso às tábuas do chão do Coliseu. Pode uma pequena legião fazer tremer as paredes do edifício lisboeta? Oh se pode.

"Don't Delete the Kisses", naturalmente, fez-me derreter. Havia uma bola de espelhos cintilante a pender sobre as cabeças dos elementos da banda que conferia charme e melancolia ao cenário, mas a estrela é o intimismo gerado pela interpretação de Ellie Rowsell, acompanhada de guitarras dreamy e teclados gravitacionais. Segue-se um quarteto de amostras de Visions of a Life composto por "St. Purple & Green", "Beautifully Unconventional" (o momento mais gingão do concerto), pela toxicidade de "Formidable Cool" e pelo bulício da densa "Planet Hunter". 



"Lisbon" mantém viva a recordação do debute, enquanto a radiosa "Bros" com o seu quê de Smashing Pumpkins incita ao coro mais sonoro da noite. "Sadboy" - ausente dos alinhamentos de concertos recentes - surge para meu grande contentamento e entretém-nos na sua passada falsamente feliz até nos conduzir a um negrume pérfido. Mas logo depois estamos a saltitar novamente com a ebulição de "Space & Time", que todos têm na ponta da língua. As portas das catacumbas abrem-se de par em par para receber "Visions of a Life", com as suas constantes mutações de compasso e densidade rítmica. A fechar, um banho de guitarras esquizofrénico algures entre os Garbage e as Bikini Kill - é o kiss-off à vida mundana de "Fluffy". 

E porque os Wolf Alice já tinham dito que nos "amavam", o encore era inevitável. "Blush", recuperada ao EP de estreia de 2013 com o mesmo nome, atinge-me em cheio. Não estava preparado para a beleza do momento. Uma balada shoegazy à la Daughter sobre o bicho da depressão. Ellie soa angelical. A bola de espelhos envolve-nos a todos. Há casais abraçados. Silêncio sepulcral. A canção eventualmente encrispa-se, mas o tumulto é sereno. O manto grunge abrasivo de "Giant Peach" cessa o concerto, mas poderíamos ter continuado noite fora (o relógio ainda nem batia as 22h), que havia combustível para mais.

Fomos poucos, sim, mas fomos o público que os Wolf Alice necessitavam para instigar o seu fogo. Foi incrível a entrega da banda numa noite que não jogava a seu favor - o que só demonstra a fibra e tenacidade de que são feitos. Cheguei a casa cansado, mas feliz. Consciente de que cada vez mais sei estar a sós com a música, no meio da multidão. Levemente divertido por constatar que nada disto teria acontecido se naquela noite fria de Inverno não tivesse aceite a sugestão do YouTube. Visivelmente ainda mais devoto a esta malta tão talentosa. Obrigado, até ao nosso reencontro.

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