'Sour' de Olivia Rodrigo: À flor da pele

 


Antes mesmo de percebermos que 2021 seria a sequela não autorizada de 2020, Olivia Rodrigo já tinha surgido de nenhures e reclamado para si a supremacia das tabelas de streaming com uma balada pop de inclinações indie, vulnerável e ferida, que mobilizou o mundo logo à primeira audição. Ali do alto dos seus 17 anos, o debute da pequena tornava-se na estreia mais estrondosa de uma teenager na cena pop desde esse meteoro chamado Britney Spears.

As razões do fenómeno ainda estão por deslindar e terão apanhado de surpresa até a própria. É certo que Olivia não era totalmente desconhecida do público adolescente, ou não fosse ela uma das novas pupilas da Disney, militando no ano de 2016 na série Bizaardvark e desde 2019 no reboot televisivo de High School Musical, mas a sua popularidade não havia chegado ainda aos níveis de Miley Cyrus, Selena Gomez ou Demi Lovato. E "Drivers License", apesar de pungente no acto de alinhar um desgosto amoroso com um momento de independência tão marcante quanto a conquista da carta de condução, não era de todo um "Baby One More Time". Mas mesmo assim conseguiu alcançar números superiores a colossos de Drake, Ed Sheeran ou Ariana Grande.

A canção dominou por completo o primeiro trimestre do ano nas tabelas um pouco por todo o mundo, mas fora do seu público-alvo poucos seriam aqueles contrários à crença de que a moça não se trataria só de um one-hit wonder. Afinal de contas, tudo se poderia dever a um extraordinário conjunto de factores a seu favor, expectativas insufladas e preferências sazonais. Mas menos de três meses volvidos e Olivia já tinha um segundo single preparado.


Se no debute eram perceptíveis as influências de Lorde, em "Deja Vu" ficou nítido estarmos perante uma fiel discípula de Taylor Swift: da escrita meticulosa desenhada nos destroços do coração, das enunciações dramatizadas mas sempre encantadoras, até às heranças melódicas pristinas que culminam numa ponte inspirada em "Cruel Summer". Raios, nem Swift era assim tão hipnotizante aos 18 anos. Repetição temática à parte, talvez o mais interessante fossem de novo as influências alternativas a vir ao de cima: um traço identitário bastante expedito para alguém com tão tenra idade associado ao canal da Disney.

Por esta altura estava já anunciada a edição de Sour dali a um mês e meio. Ora, quando é que foi a última vez que uma revelação pop esperou tão pouco pela edição do seu álbum de estreia? Basta lembrar que Billie Eilish aguardou mais de dois anos entre o lançamento do primeiro single e o do álbum, apesar de ter existido um EP pelo meio. Mas essa tem sido a forma preferida pela indústria nos últimos anos de entregar as suas revelações. Precisamos de recuar à época de Britney e Christina Aguilera, no final do século passado, para recuperar debutes tão pouco espaçados no tempo.

A questão que se impunha era: será que a Geffen Records e a própria Olivia estariam assim tão confiantes no seu material ou era tudo uma questão de ganância e pressões externas? Nem tivemos hipótese de ponderar muito sobre o assunto, porque em menos de nada "Good 4 U" caiu no nosso colo e fez-nos viver os sonhos selvagens de um cruzamento entre uma qualquer canção de Avril Lavigne, Kelly Clarkson, "Blank Space" e "Misery Business" - e aí as coisas ficaram definitivamente interessantes. Um colosso pop-punk/grunge atómico regado com baixo, guitarras eléctricas e sarcasmo a rodos, que poderia ter saído da banda-sonora de um filme indie adolescente dos anos 90.


Três primeiros singles arrebatadores, arrojados e estilisticamente distintos: Olivia serviu-nos Melodrama, 1989 e Riot! de uma vez só. Já ninguém nos poderia acusar de ir com demasiada sede à audição de Sour, porque o hype era real. Qualquer reserva que tivessemos é completamente esmagada com a abertura selvática ao som de "Brutal", dantesca composição punk rock de chama grungy sobre angústia e trauma geracional, crescer e navegar entre os holofotes de Hollywood, os corredores do secundário e o feed das redes sociais, guiado por uma prestação vocal feroz e caótica. É o melhor arranque de um álbum pop desde que "Bad Guy" eternizou a entrada do debute de Billie Eilish. "Traitor" alinha-se para ser um futuro single e o melhor sucessor de "Drivers License": prosa ferida de instrumentação folk sobre remoer nas sequelas de uma separação, enquanto a bucólica "1 Step Forward, 3 Steps Back" canaliza a melodia de piano de "New Year's Day" da mãe espiritual Swift para discorrer sobre uma relação instável e sem trajectória.

Uma torrente de dúvidas sentimentais assolam a folk delicada e magoada de "Enough for You", acerca da constatação de que um dia o esforço e a fé que deposita numa relação serão enfim recompensados com alguém que goste verdadeiramente de si. "Happier" situa-se algures entre "Perfect" de Ed Sheeran e um tema de recorte doo-wop, com Olivia a assumir sentimentos de egoísmo perante a felicidade do seu ex. "Jealousy, Jealousy" recupera em boa hora as influências alt rock numa crítica declarada aos padrões irrealistas das redes sociais a que sobretudo a sua geração está sujeita, com aproximações estilísticas ao universo dos Arctic Monkeys ou The Kills - um absoluto primor.


"Favorite Crime" é roubado às páginas de Folklore e Evermore, expressando culpa pelo desgosto amoroso a que se sujeitou, ao mesmo tempo que conserva vontade de encerrar esse capítulo e seguir em frente. "Hope Ur Ok" é talvez a canção mais importante do álbum, uma espécie de balada grungy em que Olivia abdica do seu protagonismo narrativo e o seu músculo de letrista mais resplandece, encerrando Sour com uma missiva empática e de esperança dedicada a todas as batalhas que os seus amigos da comunidade LGBTQ+, com quem entretanto perdeu contacto, travam. 

Que compelativo, arrojado e surpreendente debute, este. De todos os seus trunfos, o mais declarado de Olivia Rodrigo talvez seja o facto de ser inteiramente relacionável: escreve do ponto de vista de uma adolescente, mas todos nos conseguimos identificar e cativar seja com a sua história, precisão lírica ou a capacidade de entregar melodias imaculadas, muitas delas afastadas dos ditos canônes pop. Talvez o seu verdadeiro trunfo seja mesmo Dan Nigro, o produtor de margens que a acompanha nesta estreia expedita, e que atribui um sentido de coesão, nostalgia e vivacidade às canções de Sour. Seja como for, já ningém lhe retira o facto de ser a maior revelação e surpresa do ano. 


1. Brutal (10/10)
2. Traitor (8/10)
3. Drivers License (8/10)
4. 1 Step Forward, 3 Steps Back (9/10)
5. Deja Vu (10/10)
6. Good 4 U (10/10)
7. Enough For You (8/10)
8. Happier (7/10)
9. Jealousy, Jealousy (9/10)
10. Favorite Crime (7/10)
11. Hope Ur Ok (9/10)

Classificação: 8,6/10

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