Uma década de 'Born This Way': Orgulhosamente Queer

 


Parece que não foi assim há tanto tempo, mas no início da década passada Lady Gaga era a estrela mais brilhante e transgressora do firmamento pop desde Madonna, um colosso transformador do mainstream de então através de cada canção, videoclip, figurino ou discurso público. 

Por esta altura existia já todo um séquito de little monsters a aguardar os próximos passos da sua imperatriz, numa América que começava a despertar para as questões de igualdade, aceitação e identidade de género. Born this Way chegou, por isso, numa altura de mudança política e social e de extrema liberdade criativa para a sua autora - uma extravagante ópera dance pop e de orgulhosa expressão queer.

Nunca o orgulho LGBTQ havia sido celebrado de forma tão efusiva e ampla quanto no momento em que o tema-título do projecto rompeu o éter. Apesar de soar a uma versão evolutiva de "Express Yourself" de La Ciccone, era o poder da mensagem que a tornava incontornável: a expressão livre do amor, independentemente do género, raça ou das crenças pessoais de alguém. Um gigantesco manifesto de auto-afirmação, identidade e liberdade sexual, que viu Gaga afastar-se do universo da fama e moda, exploradas com perícia na era de estreia, para se tornar na maior porta-voz da comunidade LGBTQ na constelação pop. 


"Judas" deixou a Igreja Católica à beira de um ataque de nervos com o seu vídeo de inspiração bíblica, aprofundando assim o imaginário religioso que Gaga já havia explorado na narrativa visual de "Alejandro": uma agitada construção electro house congeminada por RedOne, com um caótico breakdown techno-tribal e versos que aludem à incapacidade de fugir da escuridão do seu passado. "Marry the Night", por seu lado, é uma furiosa e eufórica ode dance pop de influências electro rock e house à cidade de Nova Iorque que a acolheu nos primórdios da carreira, com a cantora ainda presa aos monossílabos de "Bad Romance".

O experimentalismo de Born This Way sente-se em momentos como a obscura "Government Hooker", objecto synthpop com explorações de música trance, industrial e canto gregoriano que alude ao suposto envolvimento de John F. Kennedy com Marilyn Monroe para versar sobre empoderamento sexual; na rambóia mariachi/techno-house de "Americano" que discorre sobre casamento gay e imigração, numa resposta à então controversa Proposição 8 da Califórnia e às leis de imigração no estado do Arizona; ou no synthpop-trancy midtempo de "Bloody Mary", a sequela fantasmagórica da saga religiosa iniciada com "Judas".


Existe também uma grande energia rock e heavy metal canalizada no disco. Tanto "Hair" como "The Edge of Glory", conduzidas pelo saxofone do falecido Clarence Clemons, são casamentos entre a dance pop de Gaga e o catálogo de Bruce Springsteen: a primeira compara o penteado à derradeira expressão de liberdade, enquanto a segunda versa sobre viver os últimos sopros de vida na mais profunda glória - são grandes, destemidas, maiores que a própria vida. "Bad Kids" é um encontro entre Donna Summer e os Kiss; "Electric Chapel" situa-se no limbo entre Cher e Billy Idol, cruzamento entre electro-rock e glam metal, e depois, claro, há a enormíssima "Yoü and I" ("Nebraka, Nebraska, I love ya!"), a maior canção de amor alguma vez escrita por si, country rock de estádio abençoada pela guitarra eléctrica de Brian May dos Queen.

A viagem celebrativa de Born This Way não termina sem o revisitamento a "Highway Unicorn (Road to Love)", a deitar mais achas para a fogueira da equidade, numa intrincada teia techno-industrial de aura glam; à orgia eurodisco e electroclash de "Scheiße" com mensagem feminista e versos quase falados numa espécie de alemão inventado, e à electropop com inflexões industriais semelhantes ao tema-título de "Heavy Metal Lover", que descreve o seu papel de mulher enquanto namorada e artista no topo do mundo. 


O décimo aniversário do álbum foi também pretexto para a reedição deste com seis dos seus temas reimaginados por artistas representantes e aliados da comunidade LGBTQIA+: é um deleite puro escutar Kylie Minogue na reconstrução cintilante de "Marry the Night", Orville Peck na desaceleração de um "Born This Way" em trote country, ou Ben Platt a cantar "Yoü and I" no fio da navalha com a sua experiência de teatro musical. Big Freedia, The Highwomen e Years & Years dão voz a "Judas", "Highway Unicorn" e "The Edge of Glory", respectivamente. Sinal de que o legado do disco perdura.

Mais importante do que a sobrevivência das próprias canções, é o peso e o impacto que Born This Way teve na vida de todos aqueles que o escutaram: temos razões para acreditar que tem a sua quota parte de responsabilidade em ter criado uma esfera pop mais livre, igualitária e sem medo de mostrar as suas verdadeiras cores. Uma bíblia educacional e geracional que figura como a música mais expedita, versátil e ambiciosa que Gaga fez até hoje. Paws up, we are free!

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