63º Festival Eurovisão da Canção 2018: Neste jardim à beira-mar plantado


Fogo, luzes, estirpes galináceas, invasões de palco, adereços inventivos e surpresas de última hora marcaram a 63ª edição do Festival Eurovisão da Canção, organizado pela primeira vez em solo nacional.

Israel comprovou o favoritismo precoce e levou para casa o quarto título da sua história no evento, no ano em que passavam duas décadas do seu último triunfo. Exactamente o mesmo período de vida do Parque das Nações, que durante quarenta e um dias serviu de pano de fundo ao seu certame mais mediático e gigantesco.

O escriba que vos assiste presenciou a final ao vivo na Altice Arena e o que vai daqui é um retrato possível da noite:

1) Ucrânia- A Transilvânia ali tão perto. O piano-caixão e o olho humanóide criaram o efeito dramático na medida certa, mas Mélovin sai-se um tanto mais pop do que o figurino noir faz antever. Em última instância é o inescapável cântico de estádio que faz reter "Under the Ladder" na memória colectiva.

2) Espanha- Pode lá haver coisa mais enternecedora do que ouvir dois cachopitos a cantar sobre a magia do primeiro amor? O YouTube não faz justiça à atmosfera alada que se desenhou na Altice, iluminada por smartphones e adornada pelo coro gigantesco de um público também ele embevecido pela interpretação de Amaia e Alfred. Aquele olho humedecido não escapa a ninguém.

3) Eslovénia- Alguém pediu uma rave techtonic pelas 20h? Lea Sirk instigou ao primeiro momento de bobagem e dança aleatória/desenfreada com um semi-furibundo "Hvala, ne!". Duas coisas, miguxa: essa cueca é muito duvidosa e a paragem "oh-não-que-a-estereofonia-foi-abaixo-mas-não-vou-parar-a-festa" é deveras irritante e imprópria para cardíacos. Lembremo-nos de repetir a gracinha quando a Eslovénia for anfitriã.

4) Lituânia- Bolas, ninguém nos preparou para um início de alinhamento tão emotivo. Ieva Zasimauskité não é uma vocalista exímia: parece estar sempre à beira do pranto, mas toca num qualquer ponto nevrálgico do ouvinte. Se aquele final aconchegante na ponte não se desse, tínhamos ali um cobertor e bolachinhas prontas. 

5) Áustria- Cesár Sampson imbui a arena de um R&B/gospel algures entre Craig David e Rag'n'Bone Man cantado nas alturas, primeiro, e levado depois junto da plateia. É uma proposta poucas vezes apresentada no palco eurovisivo e talvez por isso seja recebida com tanto entusiasmo: ficou em terceiro na classificativa geral. Uma das surpresas da noite.

                                                    All Aboard Lisbon GIF by Eurovision Song Contest

6) Estónia- Não se percebe muito bem o que leva a Estónia a levar uma soprano com uma ópera interpretada em italiano a defender as suas cores, mas foi uma aposta mais do que certeira. Elina Nechayeva faz com que o acto de entoação de "La Forza" pareça um exercício acrobático de extrema simplicidade aos nossos ouvidos, sendo que a vista se banqueteia com o magnânimo espectáculo de projecções que circundam a sua dantesca saia. Uau.



7) Noruega- Alguém se esqueceu de avisar o moço para não voltar ao lugar onde já foi feliz. A menos que o regresso se dê com um tema melhor do que aquele que lhe deu a vitória em 2009. O que não sucedeu. "That's How You Write a Song" está mais preocupada em ser uma desculpa para um número tingido de disco do que uma canção à prova de bala. É divertida q.b. mas tem bastantes momentos mornos. Ainda assim o 15º lugar foi um tanto austero para quem havia vencido a segunda semi-final.

                                                     Alexander Rybak Norway GIF by Eurovision Song Contest

8) Portugal- A parte mais ingrata de se ser anfitrião é que as atenções estão concentradas em tudo o resto, menos na canção. Faltaram-nos gatinhos da sorte, lasers e paredes de luz, porque tanto quanto importa, "O Jardim" tinha bastante qualidade. Foi-se embora a cadeira e o colete de forças, ficaram a produção contemporânea e a entrega emocional de Claúdia e Isaura. Orgulho "máior" de nos ver assim representados. O resto é barulho de fundo.

9) Reino Unido- Parece não haver forma de o Reino Unido acertar nas suas escolhas eurovisivas. Enviarem uma Annie Lennox de karaoke com uma canção paupérrima é pedir fracasso certo. Como se não bastasse, a pobre ainda sofre uma invasão de palco, mas nem isso chega para lhe dar visibilidade na hora da votação. É retirar-lhes o estatuto de "Big Five" e ver se não passam a redobrar os seus esforços.

10) Sérvia- E porque faltava aquele toque étnico, aí temos "Nova Deca" a cumprir a quota. A dinâmica vocal masculina/feminina é bem-conseguida, bem como a sua transposição para palco (ok, talvez o senhor das barbas estivesse um bocadinho a mais), mas de alguma forma acabou engolida e esquecida no meio do alinhamento.

11) Alemanha- Falemos de underdogs. "You Let Me Walk Alone" começou adormecida nas casas de apostas, mas foi conquistado o seu espaço e o coração dos fãs eurovisivos. Michael Schulte pega na numerologia à la "7 Years"de Lukas Graham e na beatitude vocal de um Calum Scott numa bonita canção tecida em memória do seu pai. Merecido 4º lugar.



12) Albânia- À primeira vista tinha tudo para passar despercebida, mas a interpretação sísmica de Eugent Bushpepa - o equivalente albanês de Matt Bellamy - faz com que olhemos para "Mall" com respeito. E este é daqueles casos em que parece ter soado melhor ao vivo do que lá em casa. Depois de uma passagem quase à justa na primeira semi-final, um 11º lugar é digno de nota.

13) França- Je m'apelle mercy. Oui oui oui. Com inspiração lírica desenhada na crise de refugiados na Europa e texturas sónicas electropop arrancadas a Christine and the Queens, os Madame Monsieur criaram pois um magnífico tema de consciencialização política com um pé na pista de dança. Desde cedo um dos favoritos à vitória, acabou justamente a meio da tabela, mas ninguém apaga a elegância  e nobreza deste "Mercy".



14) República Checa- Os checos este ano jogavam fortíssimo com "Lie To Me", uma agitada mescla de pop, hip hop e jazz decalcada de "Strip That Down" de Liam Payne, com um piscar de olho a "U Can't Touch This" de MC Hammer. Mikolas Josef, sem dúvida um melhor dançarino do que intérprete, vendeu com carisma a sua estilosa performance. E com um 6º lugar conseguiu o melhor resultado de sempre para o seu país. 



15) Dinamarca- Escudos, lanças e espadas a postos - o próximo navio viking parte dentro de momentos. Rasmussen soltava o nosso guerreiro interior com uma actuação repleta de simbologia e carga épica, ainda que o tema propague uma mensagem de anti-violência. Impressionante o 9º lugar por ele alcançado.

16) Austrália- E continua a maravilhosa saga da Austrália na Eurovisão. Este ano defendida por Jessica Mauboy numa canção pop multicolor e de mensagem esperançosa, cantada com mais coração do que técnica, o que a poderá ter prejudicado. Isso e a ausência de dançarinos em palco, ainda que a moça tenha tido muito jogo de cintura e #wassa. Esperava-se mais amor por parte do público.

17) Finlândia- O júbilo no Altice Arena parecia auspiciar um resultado mais animador para a canção finlandesa. Saara Aalto rodopiou, dançou sincronizadamente, espantou os mafarricos e lançou-se no vazio com uma competente produção europop. Mas a noite estava para outros apetites.

                                                   Saara Aalto Fall GIF by Eurovision Song Contest

18) Bulgária- Outro caso de favoritismo precoce que acabou em saco roto. O colectivo Equinox trazia "Bones", musculado pedaço de dark pop, que funcionava melhor no videoclipe (e aparentemente na televisão) do que ao vivo. Uma pena, porque consistia numa das produções mais inteligentes e ambiciosas deste ano. 



19) Moldávia- Andar aos saldos no IKEA por vezes dá bom resultado. O trio DoReDoS trouxe uma das canções mais festivas e divertidas da edição de 2018, que resultou num dos usos mais inventivos de adereços vistos em tempos no palco da Eurovisão. Por momentos, parecíamos regressados aos anos 90. A ousadia compensou: contas feitas, 10º lugar para "My Lucky Day".

                                                        Lisbon Moldova GIF by Eurovision Song Contest

20) Suécia- Impressão minha, ou as participações suecas estão cada vez mais artificiais? Ao Ken do ano passado sucede um poser gabarolas de falsete duvidoso com uma performance traçada ao milímetro (a sério, ele não se safava com aqueles movimentos ridículos na discoteca) feita completamente para o público lá de casa. Na arena instalava-se uma dança cool e descontraída. E na cabeça do júri nacional um vírus nocivo. Onde é que já se viu isto vencer no seu critério?

21) Hungria- A entrada mais excêntrica deste ano consistia num quinteto de metalcore com babyface. Os húngaros AWS dificilmente se safavam numa noite composta por outras latitudes, mas a passagem à final foi o melhor prémio que poderiam ter tido. Menos explosões e berraria talvez tivessem sido aconselháveis. Ficou o esgar de assombro.

22) Israel- Não podemos dizer que não prevemos este cenário. A grande favorita desde o início perdeu gás para o Chipre na última semana, mas acabou por reconquistar a posição cimeira graças ao voto popular. Misto de Puka com Pikachu, Netta entregou uma mensagem de emancipação feminina com todo o fogo-de-artifício possível e a Europa rendeu-se. E mesmo quem a detestava, eventualmente acabava por dançar ou trauteá-la. Oh well. 



23) Holanda- Waylon e o seu country rock à la Kid Rock estavam a pedir o último lugar, mas a atitude badass deve ter safado o seu aborrecido e bafiento "Outlaw In 'Em". De volta ao estaleiro de onde nunca devia ter saído.

24) Irlanda- Primeiro foi a dança entre os dois rapazes. Depois a censura que foi alvo na televisão chinesa. Onde é que fica a canção no meio disto tudo? Certo, um número acústico inofensivo que até faria Ed Sheeran bocejar. Tivesse tido direito a invasão de palco e era top 10 na hora. 

                                                       Eleni Foureira Fire GIF by Eurovision Song Contest

25) Chipre- Depois de Portugal, é agora o Chipre quem ocupa o lugar de maior perdedor de longa-duração, estando há 37 anos à espera de ganhar. Para a entrada deste ano foram buscar uma grega com raízes albanesas que cultiva heranças de Shakira e Beyoncé e propagou um ardente "Fuego" de influências dance pop balcãs que, muito honestamente, merecia ter levado o troféu para casa. O público ia ao delírio, as delegações dançavam euforicamente e a disputa foi acesa até ao fim. Bem, sempre podem esperar mais 16 anos como nós. 



26) Itália- Muito possivelmente ajudada pela tradução multilíngue da letra, a abordar as crescentes ameaças terroristas que grassam um pouco por todo o mundo, e pelo derradeiro lugar no alinhamento, a Itália conseguiu o 5º lugar da classificação geral. Facto notável, ainda para mais cantada na língua nativa. Da plateia foi uma autêntica seca, tendo em conta que sucedia a Eleni Foureira. 


Findo o longo desfile das canções, há ainda tempo para escutar o projecto "Som de Lisboa" que reune Sara Tavares, Dino D'Santiago, Mayra Andrade, Plutónio e Branko numa celebrada ementa que liga as linguagens electrónicas à lusofonia. Horas antes, Ana Moura e Mariza levaram o fado às casas de cerca de 200 milhões de espectadores e o desfile das bandeiras tinha tido como banda-sonora a dupla Beatbombers, bi-campeã do mundo na modalidade de scratch. Nunca antes se tinha visto uma final da Eurovisão tão virada para as tradições e heranças do país anfitrião: embrulha, Europa.

Antes do anúncio das pontuações, aclamamos o regresso de Salvador Sobral, que nos vem estrear ao vivo o belíssimo novo single "Mano a Mano", acompanhado ao piano por Júlio Resende, e entoar na companhia do ídolo Caetano Veloso a canção responsável pelo nosso ano de glória eurovisiva. E naquele momento das duas uma: ou estamos todos de lágrima no olho ou plenamente gratos por estarmos ali a presenciar história diante dos nossos olhos.

A pontuação do júri nacional chega, matreira, e repleta de incongruências, baralhando o que se pensava ser certo até então. Nota de destaque para os 12 pontos atribuídos a Kanye West e a La La Land. Não. Simplesmente não. O televoto trata de reverter as surpresas e confirma o favoritismo inicial de Israel, que herdará agora da organização portuguesa a tarefa de erguer o Festival de 2019. A ver vamos.

A música não se trata de fogo de artifício, mas sim de sentimento. "Toy" de Netta terá ganho mais pelo recurso aos adereços e chuva de faíscas do que propriamente pela comoção, mas será que um tema que nos faça dançar desalmadamente não é tão válido quanto um que nos faça chorar perdidamente? Se o propósito da música é sentir, então Israel fez tudo certo. É por isso que a Eurovisão continua a ser um espectáculo tão fascinante: tudo cabe, porque tudo isto existe (e por vezes é triste), mas faz sempre parte do fado.

Últimas palavras para a excelente organização portuguesa que mostrou ser capaz de fazer um evento desta envergadura com toda a competência e sabedoria possíveis. Como se não bastasse o sentimento de euforia e orgulho, vivi de muito perto toda esta aventura enquanto voluntário do Festival, mas isso é uma história que fica para outra altura. Parabéns, RTP. Parabéns a todos nós.

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