Rock in Rio Lisboa 2018, 30 de Junho- Mesa para quatro imperatrizes
Último dia da oitava edição do RIR Lisboa 2018 e a Bela Vista acolhe de novo o sol, preparando-se para apresentar um não muitas vezes visto cartaz inteiramente feminino e para ser também espaço improvisado de visionamento do jogo da selecção nacional.
O calendário do Mundial obriga a antecipar os concertos do Palco Mundo e, como tal, uma jovial Hailee Steinfeld dá o pontapé de saída às festividades pelas 16h30. A actriz de vinte e um anos feita cantora há pouco menos de três tem aberto as primeiras partes da digressão de Katy Perry, por isso não é de admirar que tenha recebido também convite endereçado para as bandas da Bela Vista.
O repertório é escasso, mas chega para proporcionar uma performance sólida de trinta minutos. O arranque ao som de "Love Myself" congrega as hostes, mas sem provocar entusiasmo colectivo. A letargia prolonga-se em "Show You Love", "Hell Nos and Headphones" e - surpreendentemente - até ao recente "Capital Letters", momento bastante recomendável da banda-sonora da última instalação da saga do tau-tau erótico. A pequena é simpática e comunicativa, suportada por um trio de músicos e bailarinos competentes, mas parece não haver forma de suscitar alguma emoção por entre o público.
Até que se sai com uma acertada cover de "Flashlight" recuperada a Pitch Perfect 2 e conquista finalmente a plateia, já a aquecer as vozes para quando for Jessie J a interpretá-la. Dali, é sempre a somar: "Most Girls" está ainda fresco na memória, o inescapável "Starving" - o tema mais robusto do seu catálogo - arranca os maiores aplausos, e o igualmente catita "Let Me Go" coloca um ponto final no breve concerto, numa altura em que o público estava finalmente na mão. Só o tempo dirá se Hailee conseguirá dar o salto para a primeira liga da pop, mas por enquanto as perspectivas são animadoras.
O relógio bate as 17h45 e Ivete Sangalo sobe pela oitava vez (nona, aliás, se contarmos com a dobradinha de 2016) consecutiva ao palco de um festival que é também seu. Por ser da "mobília", há uma certa tendência para desvalorizar a performance da Rainha do Axé, mas o escriba que vos assina quase que pode garantir que nem Jessie J ou Katy Perry deixaram o público tão em êxtase como Vevete, assim carinhosamente apelidada pela legião de fãs. Em cada visita, a mesma devoção e entrega - Ivete cumpre sempre.
O alinhamento da baiana é entregue numa sucessão non-stop de êxitos ("Festa", "Sorte Grande", "Abalou", "Céu da Boca"), entre juras de amor lançadas ao público efusivo e divertidas confissões das aventuras da maternidade. Há ainda espaço para receber no palco a amiga Daniela Mercury - de que é que espera Roberta para lhe conceder também um espacinho no cartaz? - num celebrado "O Canto da Cidade" e para revisitar "Levada Louca", "Beleza Rara" e "Eva" do tempo em que militava na Banda Eva. Ivete desdobra-se no palco em danças com os bailarinos, interacções com os músicos e diálogos de amor com a plateia - o amor é genuíno e recíproco. E a festa poderia continuar se não houvesse jogo decisivo dali a instantes.
Abatidos com o desaire da nossa selecção, cabia a Jessie J confortar o espírito das almas resistentes que permitiram que a música amenizasse a tristeza sentida. Com a bandeira portuguesa às costas, a intérprete britânica acertou no gesto de "condolências" mas falhou no tiro de partida com um tanto agressivo e algo confuso "Do It Like a Dude" que poderia ter sido guardado para mais adiante. "Burnin' Up" recuperado a Sweet Talker (2014) e "Play" do recém-editado R.O.S.E. esclareceram um pouco melhor as intenções da artista, mas foi com o contagiante "Domino" que Jessie terá captado a atenção dos milhares de presentes que enchiam o recinto.
Acompanhada por um baterista, baixista, guitarrista e duas notáveis coristas, Jessie J esforçou-se desde o começo para criar uma relação com os presentes, francamente admirada e algo emocionada por constatar que diante de si tinha uma multidão bem mais vasta do que aquela que estava à espera, incitando esta a sentir a música da forma que bem lhe apetecesse. "Não quero ser perfeita, apenas humana", afirmava na abertura de "Nobody's Perfect", uma das baladas-âncora do seu percurso e que suscitou o primeiro coro em uníssono (e algumas lágrimas) do público.
Depois disso segue para um set acústico que compreende a massiva "Flashlight", "Thunder", "Stand Up" e uma emocionante "Who You Are" - "façam o que fizeram, sejam sempre fiéis a vocês mesmos", pede Jessie - que começa acústica, em cacos, e adensa-se numa tempestade eléctrica com vísceras à mistura. Na imperial "Queen" do novo álbum proclama amor-próprio e pede ao público que se sinta orgulhoso na sua própria pele, partindo depois rumo às estrelas com uma breve passagem pelo número de cabaret "Mamma Knows Best", com paragem celebrada em "Bang Bang" e final espirituoso ao som de "Price Tag", a canção que a colocou efectivamente no mapa.
Jessie J despede-se do público comovida e profundamente agradecida pela recepção calorosa que encontrou - e o certo é que dificilmente terá existido outro concerto nesta edição do Rock in Rio tão repleto de alma, partilha e verdade.
São necessários 40 minutos de intervalo para a montagem do palco para a grande atracção da noite. Mas ela não se faz tardar e até chega cinco minutos mais cedo que o previsto: após faustosa introdução de vídeo, Katy Perry surge para gáudio dos presentes entre fumaças e explosões de confettis, apresentando-se com uma reluzente armadura (?) dourada qual Cavaleira do Zodíaco a entoar a súplica confessional do tema-título do mal-amado último álbum. "Roulette", uma das menos más de Witness, não se faz tardar, desenhando-se com um par de dados gigantes em seu redor, mas cedo se percebe que a cantora enfrentará resistência por parte do público sempre que insistir no alinhamento do dito cujo.
O entusiasmo gera-se com a chegada de "Dark Horse", apresentado numa estranha versão techno e com uns bons bpm's a mais que o original, mas que o público reconhece e aclama com fervor. O recente "Chained to the Rhythm" é boicotado ao início por problemas técnicos, mas é levado a bom porto assim que revela as suas cores de manifesto político-social. Fim do primeiro acto, vitória tremida.
Mudança de fatiota para o início do segundo acto, com mais um interlúdio visual de encher o olho. É o segmento dos grandes hits. "Teenage Dream" é apresentado sob disfarce electro-funk saído dos anos 80 e todas as borboletas, suspiros e êxtase romântico do original são sugados pela roupagem histriónica. E por esta altura percebemos que tal destino aguardará os outros êxitos - foi provavelmente a forma encontrada por Perry de combater a monotonia de quem já os canta há anos na estrada. Mas quem nunca os ouviu ao vivo chora um bocadinho interiormente.
Antes de se atirar a "Hot n Cold" (rebaptizado de "Quente e Frio"), Katy faz alusão às suas raízes portuguesas e pede à plateia que lhe ensine algumas palavras no dialecto. As tentativas cómicas, claro, despertam gargalhadas entre a multidão. A visita a um dos maiores hinos do seu álbum de estreia é marcada também pela passagem demasiado breve (e algo aldrabada) por "Last Friday Night (T.G.I.F.)", um combo pouco feliz. "California Gurls" é pretexto para a entrada em cena do mítico Left Shark, que se popularizou pela gaffe na actuação da cantora no Super Bowl, e que tem ali um breve sketch humorístico bastante apreciado pelos presentes. A canção, essa, é entoada na ponta da língua e - graças a deus - não se desvia muito do original. A rematar, um "I Kissed a Girl" em pleno cair do pano do mês do orgulho gay, que a intérprete dedica a "todos aqueles que tiveram coragem de experimentar outras latitudes". O inesquecível hit de estreia é servido primeiro em toada eurodance (cruzes, canhoto), até que a dada altura Katy anuncia que vai voltar ao original - e todos respiramos um pouquinho de alívio. Fim do segundo acto - e fica a sensação que deveria ter sabido melhor.
É inegável o papel primordial que a componente visual desempenha neste espectáculo, mas por vezes fica a sensação de que é tudo um pouco... demasiado. Dos adereços mastodônticos, às bizarras dançarinas que passaram mais de metade do tempo com alguma coisa enfiada na cabeça, passando pelos vídeos barulhentos e caóticos até aos próprios figurinos de Katy, que a voltas tantas sobe ao palco com uma fatiota que se assemelha a um abajour de cristal. Na música pop, como na vida: tempero é essencial. Excessivo, visualmente poluto e grotesco são palavras capazes de traduzir a experiência audiovisual do concerto.
O terceiro acto é mais conciso: existe o anímico "Déjà Vu", o romance paranormal de "E.T." e um suculento "Bon Appétit" que o público aclama do início ao fim. O quarto acto traz uma desejada humanidade: sentimo-la com a leitura acústica de "Wide Awake" e sobretudo na interpretação tocante de "Into Me You See", a balada que encerra Witness e que o público mostra desconhecer. Mas chega para perceber que por detrás dos confettis e maquilhagem excessiva ainda mora Katheryn Hudson. "Power", uma das mais robustas do último disco, encerra o segmento com vigor.
Perry guardou sabiamente alguns trunfos para o último dos actos. "Part of Me" e "Roar" despertam os coros mais efusivos até então, enquanto "Swish Swish" - o beijinho no ombro à agora amiga Taylor - revela o seu êxtase insuflado: aparentemente celebrado pela plateia, mas sem direito a grandes aplausos assim que termina. A própria Katy parece olhar num misto de incredulidade divertida e atrapalhação para os seus back-up dancers, como se o público da Bela Vista não fosse digno de receber o que tinha acabado de acontecer. Mas, por generosidade ou obrigatoriedade contratual, ainda fomos agraciados com um encore: "Pendulum", a celebratória canção-kármica de Witness que lançou o tapete para o final da festa ao som do inevitável "Firework", com direito a pirotecnia de palco. O fogo-de-artifício, esse, decorreu minutos depois com o medley de encerramento desta oitava edição do RIR.
Seria de pensar que Katy Perry conquistasse facilmente o público com o ror de êxitos que tem semeado ao longo dos últimos dez anos, mas aquela que se viu ontem à noite está longe de ser a sua melhor versão. Não faltou empatia nem calor do público, mas sim uma incapacidade de nos fazer acreditar na magia e no êxtase que certo dia as suas canções transportaram. Ou, como a dada altura brincou, já o espectáculo ia avançado: "if you're wondering when Katy Perry is coming on, I'm Katy Perry with a motherf*cking haircut". O problema, esse, vai mais além do que um hair stylist possa resolver - é da alma, mesmo.
O Rock in Rio fechou assim as suas portas por este ano. Em 2020 haverá mais.
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