10 anos de 'Bionic': X-7IИA do Futuro
O ano era 2010. A viragem da década não corria de feição a nenhuma outra estrela pop que não se intitulasse Lady Gaga. E era particularmente madrasta para as que entravam nos dois dígitos de carreira, altura em que quase todas atravessam a sua primeira crise de identidade e popularidade.
Esse mesmo ano acabou por ser o último francamente interessante do percurso de Christina Aguilera. Um que começou nas latitudes electrónicas de Bionic e terminou no pólo oposto da pop jazzística e de cabaret presente em Burlesque. A banda-sonora que assinalou a primeira incursão de Xtina pela Sétima Arte acabou por vender mais cópias que o seu incompreendido quarto álbum de estúdio, mas foi Bionic que marcou a história dos anos 10 da cultura pop.
Lançado a 4 de Junho de 2010, o sucessor de Back to Basics (2006) representou uma nova mutação artística para a cantora norte-americana, a recuperar o despudoramento e a energia sexual de Stripped (2002), combinado com o apetite por novos horizontes sónicos, entre eles a exploração pela pop electrónica então em voga.
Mas não seria um álbum de Aguilera se não rondasse os 60 minutos de duração e vivesse de uma óbvia inconsistência sonora. A primeira metade oferece-nos arrojo, depravação e sintetizadores a rodos, enquanto a segunda opta por baladas contemplativas, reservando-nos um último round de propostas ousadas.
É verdade que o timing da edição não foi propriamente benéfico - lançado no pico da Gagamania, foi entendido como uma tentativa algo desesperada de lhe fazer frente - nem a decisão estratégica de singles foi brilhante, mas o tempo tratou de mostrar que a sua fria recepção foi exagerada e que há um certo culto em seu redor.
Bionic é efectivamente o disco em que Xtina corre mais riscos e chama a si a equipa mais heterogénea de colaboradores que alguma vez reuniu: de Polow da Don, John Hill, Tricky Stewart ou Switch, aos mais disruptivos Ladytron, M.I.A., Le Tigre, Peaches ou Santigold. Nomes menos sonantes da maquinaria pop e outros completamente inesperados para alguém que ainda competia pelo topo das tabelas.
"Not Myself Tonight", a versão sadomaso e revestida de látex de "Dirrty", não funcionou como single de avanço - apesar do choque e da provocação - pelo menos da forma que Aguilera pretendia. E "Woohoo", uma libidinosa ode dancehall e electro-R&B com uma estreante Nicki Minaj à cabeceira, algures entre "Rude Boy" de Rihanna e o seu próprio "Can't Hold Us Down", perdeu-se no éter sem a força de um vídeo ou actuações promocionais. Talvez as coisas tivessem sido diferentes se o bombom electro "Glam", passadeira estendida a "Vogue" de Madonna, ou a força bruta de "Prima Donna" entrassem para as contas.
Ainda na primeira metade damos de caras com o fogo bilíngue de "Desnudate" - um pouco aquilo do que poderia soar um êxito de Anitta em 2020 com o mercado latino na mira - e a verve electro/new wave de "Elastic Love" com a benção de M.I.A. - facilmente a faixa mais disruptiva e extraordinária do registo - com Xtina transformada numa fembot lançada em bizarras analogias entre afecto e material de escritório.
Linda Perry ainda sabe dar baladas de excepção a Christina, e a belíssima "Lift Me Up" é disso prova, mas Bionic é pioneiro na forma como revela Sia enquanto prendada escritora de canções. A então quase desconhecida australiana tece-lhe o doce embalo de "All I Need", o retrato ao espelho de "I Am", e sobretudo a desolada "You Lost Me", ainda uma das performances vocais mais retumbantes de toda a discografia de Xtina. Antes disso, a sedutora passada R&B de "Sex for Breakfast", rotina dos hábitos conjugais, transporta-nos à era de Stripped.
O trio final talvez soe a encore desnecessário, mas diverte-nos a valer. A pop em tons glam rock de "I Hate Boys" é o momento Britney do álbum com a ala masculina debaixo de fogo, a toada electro-disco de "My Girls" com Peaches à boleia não soa a absolutamente nada que Xtina tenha feito ao longo da carreira, e "Vanity" deveria ter sempre honras de fecho no RuPaul's Drag Race, com a sua carga disco-queer assanhada.
Até a edição deluxe tem os seus momentos de ouro: seja na brisa new wave catita de "Monday Morning", no transe synthpop quase sussurrado de "Birds of Prey" com o condão dos Ladytron, ou no rodeo hip hop de uma faixa tão esquizóide quanto "Bobblehead" - ataque a pés juntos à cultura de futilidade em Hollywood - que figura como a sua versão de "Hollaback Girl".
É mais do que altura de lhe retirarmos a moção de censura e o aclamarmos como um trabalho arriscado, por vezes visionário, por vezes incongruente, mas em última instância recompensador. Algo que Lotus (2012) e Liberation (2018) não souberam ser. Bionic está ainda muito a tempo de ser (re)descoberto pelas actuais e futuras gerações. Let us not forget who owns the throne.
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