'Disco' de Kylie Minogue: Bálsamo discotástico
Há um ano Kylie Minogue fazia reset ao oráculo do tempo e devolvia-nos exactamente ao início do milénio, quando Light Years (2000) e Fever (2001) foram essenciais na sua regeneração artística, plenos de verve dance pop e disco. Para o décimo quinto registo da sua longa carreira, a premissa foi mais estreita e focada, servindo-nos um magnífico álbum directamente inspirado no estilo que nomes como Giorgio Moroder, Donna Summer ou os Bee Gees ajudaram a erguer nos anos 70, responsável (a meias com Future Nostalgia de Dua Lipa e What's Your Pleasure? de Jessie Ware) pelo revivalismo disco que se está a fazer sentir neste início da década.
Há pouco tempo o álbum foi revisto e ganhou uma expansão - denominada Guest List Edition - que prolonga o sentimento de êxtase e regeneração que actualmente a carreira de Minogue atravessa: motivo de sobra para voltarmos a ele e lhe darmos o tratamento merecido.
Tudo começou com a disco galáctica de "Say Something", algures entre os Scissor Sisters e Goldfrapp, com Kylie numa cintilante demanda pelo amor e pela unificação em tempos agrestes para a humanidade. Depois de nos reunir na pista de dança, ergueu a varinha e dela brotou "Magic", ponto alto do álbum e o seu melhor single desde "Get Outta My Way", bálsamo de esperança e crença de que a música e o amor são talismãs para a felicidade terrena. Conseguimos vê-la a espiralar incessantemente no seu bodysuit turquesa, como que abençoada pelo sopro dos Chic.
"Real Groove" também foi destacado para ilustrar a campanha promocional de Disco, ainda que na sua versão remisturada - baptizada de Studio 2054 Remix - assistida por Dua Lipa, que na verdade ficou um bocadinho aquém da original, mais suculenta e funky. Este encontro geracional teria merecido outro molde. Também a luxúria feliz de "I Love It", forte na recordação de Donna Summer ou Gloria Gaynor, se fez sentir a determinada altura da era. E a extravagância de "Dance Floor Darling" - suposto quarto single não oficial - apanha-nos sempre nas malhas das suas guitarras funky e na deliciosa e ofegante mudança de compasso. Quanto êxtase!
"Miss a Thing" soa a uma sofisticada reconstrução de "In Your Eyes", mas como se Moroder a tivesse tecido para Random Access Memories (2013) dos Daft Punk - absolutamente deslumbrante. "Monday Blues" sabe a um cocktail tropical com promessa de uma dança de conga à beira da piscina - Kylie em aditivos e a levar-nos a agudos que já não ouvíamos desde os de Jake Shears nos seus Scissor Sisters. Em "Supernova" vemo-la a envergar novamente o fato de justiceira galáctica, munida de vocoder, lasers espaciais e múltiplas referências ao cosmos.
"Last Chance" é um monumento upbeat vintage erguido aos ABBA e Bee Gees com o charme pop de Kylie à mistura, a menção da praxe ao disc jockey está em "Where Does the DJ Go?", o equivalente da diva australiana a "I Will Survive", enquanto "Unstoppable" é um tanto mais sóbrio e contemporâneo que os seus irmãos de rodela, com um refrão e sintetizadores que nos transportam aos noughties. "Celebrate You", por seu lado, é o beijo de despedida da diva que nos trouxe a noite de esplendor na pista de dança - cantado na terceira pessoa, a uma Mary comum - em que finalmente pousamos os pés na terra depois de termos andado à boleia pela galáxia em estado de glória.
Nas faixas deluxe que são agora acrescentadas à nova edição, encontramos a profusão de amor de "Till You Love Somebody", com ecos de Chic mas ainda assim firmada no séc. XXI; a embriaguez leve e bamboleante de "Fine Wine", filha da noite de amor inconsequente entre "Monday Blues" e "Supernova"; o companheirismo de "Hey Lonely", com promessas de amor eterno; e a ode à libertação de inibições na pista de "Spotlight", que nos devolve à era de X (2007).
No lote de inéditos criados para a reedição, o destaque está em "A Second to Midnight", com Kylie a celebrar os anos 90 como se nunca tivessem passado de moda, de braço dado com um Olly Murs aka Years & Years que se revela o parceiro mais-que-perfeito para esta viagem na máquina do tempo, ainda que a melodia soe vertiginosamente próxima de "(I Just) Died in Your Arms". O devaneio disco-funky de "Kiss of Life" junta-a a Jessie Ware com todo o requinte possível, com esta a puxar James Ford, esteta primordial de What's Your Pleasure?, para o universo da australiana. E depois de passar o testemunho à nova geração, na derradeira "Can't Stop Writing Songs About You" vemo-la a prestar vénia a Miss Gaynor, presas a sintetizadores musculados e ao doce tormento de não conseguirem tirarem um outro alguém da cabeça.
Mas que noite tão extasiante, esta. Não há muitos artistas com trinta anos de carreira e quinze álbuns editados que se possam gabar desta vitalidade - Kylie está para lá do dito prazo de validade que a indústria lhe concede, mas a ensinar às novas gerações como se faz um bom álbum de revivalismo disco, e a provar que há razões para continuar a superar-se, e a dar o melhor de si aos fãs e ao público. Onde pára o comboio a seguir, ninguém sabe, mas queremos continuar nesta locomotiva para o que der e vier.
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