Ana Moura- Desfado

 
Gosto muito de Ana Moura, é um facto. Sempre a considerei uma das mais interessantes artistas portuguesas, mas, verdade seja dita, pouco ou nada conhecia do seu reportório para além dos temas mais conhecidos. Foi por isso em boa hora que este Natal recebi no sapatinho o seu mais recente trabalho, Desfado. Não foi uma escolha segura, mas senti que era altura de arriscar. Porque não? Já comprei álbuns piores, escolhas infelizes das quais hoje me arrependo, e este não será certamente um deles. Foi então que deixei as incertezas para trás e mergulhei no universo de Ana Moura. Partilho com vocês aquilo que senti:
 
1) Desfado- Caloroso tema de abertura, é todo ele um doce contra-senso. Da autoria de Pedro da Silva Martins (dos Deolinda), está repleto de contradições que exigem uma atenta análise. Para um álbum que se propõe a desconstruir o fado, é um óptimo começo que me deixa de sorriso no rosto e com a certeza de que acabo de embarcar numa grande aventura.
 
2) Amor Afoito- Tornou-se logo num dos meus temas favoritos. Assinado pela dupla que constitui os Virgem Suta (Nuno Figueiredo e Jorge Benvinda) tem uma letra e interpretação belíssimas que me deixaram de lágrimas nos olhos. Diz-se que quando as coisas são cantadas na nossa língua, sentem-se de outra maneira. Constatei isso e senti-me comovido por estar tão próximo como nunca da música portuguesa.
 
3) Até ao Verão- Não engraçei particularmente com ele à primeira audição, há quase 3 meses atrás. Parecia-me tão diferente da Ana Moura que conhecia, de modo que lhe torçi o nariz. Bem diz o ditado que "primeiro estranha-se e depois entranha-se" e num ápice me rendi à sensual fragrância por ele emanada. Hoje em dia entranhou-se em mim de tal maneira que a trauteio não raras vezes. Apenas porque me faz feliz.
 
4) Despiu a Saudade- Outra das minhas favoritas. Tem mão de António Zambujo e é cantada de forma tão terna e apaixonada que me aquece o coração e a alma. A letra foi formidavelmente desenhada, tratando-se, creio eu, de um muito aguardado reencontro. Bonito momento.
 
5) A Case of You- Chego àquele que é o primeiro tema em inglês, da autoria de Joni Mitchell, surpreendente em todos os aspectos. Tinha curiosidade em ouvi-la noutro dialecto mas tinha também receio que o encanto se perdesse. Apesar do registo fugir ao habitual, a guitarra portuguesa mantém acesa a essência portuguesa e o resultado final assemelha-se a uma Norah Jones em versão fado. Extremamente reconfortante.
 
6) E Tu Gostavas de Mim- Miguel Araújo, o homem dos aviões, é chamado ao serviço e não desilude. É talvez a letra mais pop e brincalhona de todo o disco (ouvir Ana Moura cantar versos como "nitro super combustão", "microchips em cães normais" ou "microsondas em Plutão" é digno de nota) mas depois possui também uma raíz demarcadamente portuguesa, algo popular. É uma feliz união entre influências modernas e tradicionais. 
 
7) Havemos de Acordar- De novo com o homem forte dos Deolinda ao volante, tem talvez a letra mais bonita de todo o álbum, tingida de sentimento e de uma beleza rara. Julgo que será por isso seguro dizer que Pedro da Silva Martins é o compositor mais brilhante do álbum. Destaca-se também a participação de Tim Ries que embeleza o tema com o seu saxofone. Ana Moura, como sempre, é a musa perfeita para tanta inspiração junta e entoa os versos como se de ternas carícias se tratassem.
 
8) A Fadista- O nome não engana: é o tema mais convencional de um disco que até agora nunca tentou fugir do fado, mas sim expandir os seus horizontes. Todo ele é uma história, acerca de uma mulher de negro (a tal fadista) confundida com uma mulher da má vida. A estrutura e temática são tradicionais, só que Ana Moura torna-o contemporâneo ao interpretá-lo não de forma sofrida, mas sim com a dose e tempero certos. E é por isso que tão facilmente chega aos ouvidos das pessoas.
 
9) Se Acaso um Anjo Viesse- A toada tradicional mantém-se, mas desta vez creio que Ana Moura entra por territórios nunca antes explorados: os do fado corrido (julgo que assim se chama, perdoem-me se não for). Não dura mais que um minuto e meio, e por isso não tem muito que se lhe diga: é talvez o tema que menos aprecio. De qualquer forma, tiro-lhe o chapéu pela aventura.
 
10) Fado Alado- É a vez de Pedro Abrunhosa contribuir para a causa naquele que é o tema em que mais associo ao autor que o compôs, na medida em que se não o soubesse, facilmente identificaria como sendo uma criação à la Abrunhosa. Mais do que alado, como o título indica, é uma homenagem a este país à beira-mar plantado: "Somos um Povo alado/ um Povo que vive no Fado/ a Alma de ser diferente". Magnífico trabalho de composição e interpretação.
 
11) A Minha Estrela- Entramos no universo de Luísa Sobral, também aqui facilmente reconhecível. De forte apelo pop, é provavelmente o momento mais intimista do álbum, fácil de se gostar. É como se fosse a melodia que embala a noite, que nos aconchega e dá cor aos sonhos.
 
12) Thank You- O 2º tema cantado em inglês é aquele que se afasta mais do universo do fado. Aqui encontramos uma Ana Moura ressentida mas emocionalmente forte, em jeito de femme fatale, pronunciando cada palavra com uma perigosa carga sensual, como se de balas tratassem. Que bem lhe fica esta aura de matadora...
 
13) Como Nunca Mais- Da autoria de Tozé Brito, seu habitual colaborador, é o tema mais encantador de Desfado. Fala da vontade de descobrir novas tonalidades, de viver novas experiências e viver intensamente: creio que Ana Moura se revê por inteiro na letra. Foi crescendo em mim a cada nova audição e fica-me constantemente encravado na memória. Simplesmente maravilhoso.
 
14) Com a Cabeça nas Nuvens- Não sei se é pelo facto do alinhamento já ir longo, mas em todas as audições este é capaz de ter sido o tema menos memorável de todos: nunca me consigo recordar dos seus moldes. É gingão e agradável de se ouvir, mas não sobressai dos restantes, parecendo-me até semelhante a temas passados. Enfim, não é nada que belisque um álbum tão bonito como este.
 
15) O Espelho de Alice- Aqui está o cerne de Desfado, aquilo que levou Ana Moura a fazer um disco tão aventureiro como este. Dando o mote ao tema e citando Lewis Carroll e a sua obra Alice no País das Maravilhas, surgem os seguintes versos: "Mas não vale a pena voltar a ontem, nessa altura eu era outra pessoa". Está expresso o desejo da cantora em evoluir, não ficando presa ao passado. Hercúleo fado, o de Ana Moura.
 
16) Dream of Fire- Chegado ao 3º e último tema inglês já vou preparado para eventuais surpresas. A letra e música estão a cargo da própria Ana Moura, que aqui conta com a preciosa colaboração de Herbie Hancock. O tema acende de facto um fogo intenso, evocando desejos secretos escondidos nos labirintos da mente. É um objecto de sensualidade obscura que cruza jazz e fado de forma sublime. Destaca-se como um dos melhores temas do álbum.
 
17) Quando o Sol Espreitar de Novo- Não consigo pensar em forma mais perfeita para colocar um ponto final em tão belo álbum. Manel Cruz assina esta elaborada teia de pensamentos, algo redentora, que luta com fantasmas e anseia pelo perdão. Na minha mente imagino que Ana Moura caminha nos confins do mundo, rumo ao incerto, mas decidida a aceitar o seu fado, seja este qual for.
 
Bastaram-me 4 audições apenas para saber que este será um dos álbuns da minha vida. A sua compra esteve envolta em tanta hesitação e coincidências tais, que isto só pode ter sido mesmo obra do destino: era o meu fado ouvir este Desfado e cair de amores por ele. Sei que me marcará para sempre devido às circunstâncias em que surgiu e porque me fez sentir coisas que nunca nenhum outro álbum me tinha feito sentir: já há muito que tinha expandido os horizontes musicais, mas nunca me havia ligado tanto à música portuguesa como agora. Mais: posso finalmente dizer com conhecimento de causa que gosto muito de Ana Moura, percebendo o porquê.
 
Desfado é um risco mas é também um incrível salto de fé e evolução artística que a tornam na mais brilhante fadista da actualidade. Quantas colegas suas seriam capazes de fazer um disco assim? Ana Moura prova que o fado não tem barreiras e que é possível ir mais além sem quebrar e distorcer esta sonoridade tão nossa. Nunca em momento algum senti que estava a ouvir um disco pop, consegui sempre identificar a centelha do fado. Está-lhe na voz. Está-lhe no sangue. Está-lhe na alma. O que Ana Moura fez com este Desfado foi absolutamente incrível, tenho-lhe ainda mais admiração e respeito. Mas não é a única. Todos os artistas que contribuiram para engrandecer o álbum com tão belas composições ganharam também o meu respeito: mais do que autores, são autênticos poetas. Obrigado a todos vós por me terem proporcionado uma das mais bonitas descobertas da minha vida.
 
"Mas na louca lucidez
eu sei que esta é a vez
em que o fim é o recomeço"
(de "O Espelho de Alice")

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