REVIEW: Beyoncé- Lemonade
Mais do que a narração pública da crise matrimonial, Lemonade é o reflexo cru e audacioso de uma artista que passadas duas décadas nos holofotes já não deixa nada por dizer ou fazer.
Reduzir Lemonade à confissão em forma de canção que o casamento de Beyoncé e Jay-Z já viveu melhores dias, é dar-lhe apenas a dimensão de uma notícia de tablóide. Sim, na essência de Lemonade está a alegada infidelidade de Jay-Z, mas se olharmos para o fundo do copo vemos tanto mais.
Este sexto disco do seu percurso apenas é possível devido ao gigantesco passo em frente dado com o anterior álbum homónimo, momento em que Beyoncé se assume definitivamente enquanto artista conceptual, liberta de pretensões comerciais, julgamentos públicos ou reservas artísticas. Caso esse capítulo na sua discografia nunca tivesse acontecido, não a teríamos agora a expôr problemas conjugais que, noutro tempo e noutro contexto seriam tidos como sinais de fragilidade e inferiorização. De fracasso enquanto esposa e mulher.
Longe de nós reduzi-la a essa condição. Quem precisou de ver a sua memória reavivada foi mesmo Jay-Z. Não, Beyoncé não está para ser a sua mulher-troféu, nem vai guardar para si um relato que pode inspirar milhões de indivíduos, no amor e na vida. Lemonade é por isso Queen B a ser Queen B e a dar a volta por cima a uma das situações mais complicadas da sua existência. Mas é também Queen B a tomar consciência da sua herança enquanto mulher negra nascida na América, assumindo-se enquanto voz orgulhosamente activa da comunidade em tempos de profunda conturbação. E é, acima de tudo, Queen B na sua acepção mais livre, arrojada e sísmica.
"Pray You Catch Me", tema de abertura, revela desde logo a teia de desconfianças em que mergulhou a relação do casal. Desenhada a piano e instrumentação esparsa, extende-se numa secção de cordas dolentes que parecem replicar o efeito emocional de Vulnicura (2015) de Björk. Em "Hold Up" cruzam-se interpolações de "Maps" dos Yeah Yeah Yeahs e de "Turn My Swag On" de Soulja Boy embebidas numa infusão de reggae e interrogações a arder em lume brando pré-ebulição. A confrontação não tarda e chega na possante "Don't Hurt Yourself" - a mais irada criação de Bey desde "Ring the Alarm" - com aviso de ordem de despejo passional. Musicalmente é estrondosa: híbrido de blues rock com groove ska e o condão da guitarra de Jack White, figura como um dos momentos superiores de Lemonade.
"Sorry" encontra Queen B em modo impiedoso, com política zero de tolerância para arrependimentos, numa apetitosa construção de electropop insular em consonância com a homónima de Bieber. Está para Lemonade como "Flawless" esteve para o disco anterior, sendo já um marco da cultura popular em 2016 muito por culpa de versos incendiários como "middle fingers up" ou "he better call Becky with the good hair". "6 Inch" é o primeiro posto de segurança do disco, com Beyoncé em familiar território hip hop na companhia de um sempre valioso The Weeknd, narrando as crónicas da má vida de uma potencial "Becky" que abalou o casamento. Já "Daddy Lessons", infecciosa na sua inesperada toada country, é um testemunho às suas origens texanas e à educação parental: como que perscrutando nas raízes soluções para o problema que tem em mãos.
"Love Drought", ao melhor estilo contemplativo/espiritual de Jhené Aiko, indicia os primeiros sinais de reconciliação, que chega por fim em "Sandcastles" - o momento indubitavelmente Celine do álbum - tremenda balada soul/gospel de travo pop que nos transporta à era de I Am... Sasha Fierce (2008). É tempo de reconhecer a mágoa e seguir em frente, rumo a um novo plural - é o que nos diz o fantasmagórico interlúdio "Forward" em divagações James Blake-ianas.
Trio de luxo reservado para a secção final. Séria candidata a canção do ano, "Freedom" une uma imperiosa Queen B ao régio Kendrick Lamar para uma monumental ode de apoio à comunidade afro-americana contra a opressão que esta enfrenta. Aqui a luta de Lemonade deixa de ser interior e passa a ser em nome de todo um povo - momento histórico para a música enquanto veículo de combate pela igualdade racial. "All Night" representa a vitória do amor verdadeiro e a celebração de uma nova oportunidade. Vive do mesmo espírito de felicidade genuína de "XO" e aponta ao ceú estrelado com o paraíso a perder de vista. "Formation", a fechar o disco, nasce da costela trap de "7/11" combinado com o bounce típico de Nova Orleães, e é a contribuição de Bey para o movimento Black Lives Matter, mobilizando as suas tropas para a defesa dos interesses da comunidade. Ei-la na sua veia mais contestatária e ideologista, consciente da sua herança e orgulhosa das suas raízes.
Se à qualidade das canções adicionarmos a componente visual do disco, Lemonade assume-se como a obra maior de 2016, coerente com a visão e identidade de uma Beyoncé em constante evolução e em contramão com aquilo que se espera de um astro da sua dimensão. Nada menos, portanto, do que uma lenda a cumprir o seu destino.
Classificação: 8,8/10
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Reduzir Lemonade à confissão em forma de canção que o casamento de Beyoncé e Jay-Z já viveu melhores dias, é dar-lhe apenas a dimensão de uma notícia de tablóide. Sim, na essência de Lemonade está a alegada infidelidade de Jay-Z, mas se olharmos para o fundo do copo vemos tanto mais.
Este sexto disco do seu percurso apenas é possível devido ao gigantesco passo em frente dado com o anterior álbum homónimo, momento em que Beyoncé se assume definitivamente enquanto artista conceptual, liberta de pretensões comerciais, julgamentos públicos ou reservas artísticas. Caso esse capítulo na sua discografia nunca tivesse acontecido, não a teríamos agora a expôr problemas conjugais que, noutro tempo e noutro contexto seriam tidos como sinais de fragilidade e inferiorização. De fracasso enquanto esposa e mulher.
Longe de nós reduzi-la a essa condição. Quem precisou de ver a sua memória reavivada foi mesmo Jay-Z. Não, Beyoncé não está para ser a sua mulher-troféu, nem vai guardar para si um relato que pode inspirar milhões de indivíduos, no amor e na vida. Lemonade é por isso Queen B a ser Queen B e a dar a volta por cima a uma das situações mais complicadas da sua existência. Mas é também Queen B a tomar consciência da sua herança enquanto mulher negra nascida na América, assumindo-se enquanto voz orgulhosamente activa da comunidade em tempos de profunda conturbação. E é, acima de tudo, Queen B na sua acepção mais livre, arrojada e sísmica.
"Pray You Catch Me", tema de abertura, revela desde logo a teia de desconfianças em que mergulhou a relação do casal. Desenhada a piano e instrumentação esparsa, extende-se numa secção de cordas dolentes que parecem replicar o efeito emocional de Vulnicura (2015) de Björk. Em "Hold Up" cruzam-se interpolações de "Maps" dos Yeah Yeah Yeahs e de "Turn My Swag On" de Soulja Boy embebidas numa infusão de reggae e interrogações a arder em lume brando pré-ebulição. A confrontação não tarda e chega na possante "Don't Hurt Yourself" - a mais irada criação de Bey desde "Ring the Alarm" - com aviso de ordem de despejo passional. Musicalmente é estrondosa: híbrido de blues rock com groove ska e o condão da guitarra de Jack White, figura como um dos momentos superiores de Lemonade.
"Sorry" encontra Queen B em modo impiedoso, com política zero de tolerância para arrependimentos, numa apetitosa construção de electropop insular em consonância com a homónima de Bieber. Está para Lemonade como "Flawless" esteve para o disco anterior, sendo já um marco da cultura popular em 2016 muito por culpa de versos incendiários como "middle fingers up" ou "he better call Becky with the good hair". "6 Inch" é o primeiro posto de segurança do disco, com Beyoncé em familiar território hip hop na companhia de um sempre valioso The Weeknd, narrando as crónicas da má vida de uma potencial "Becky" que abalou o casamento. Já "Daddy Lessons", infecciosa na sua inesperada toada country, é um testemunho às suas origens texanas e à educação parental: como que perscrutando nas raízes soluções para o problema que tem em mãos.
"Love Drought", ao melhor estilo contemplativo/espiritual de Jhené Aiko, indicia os primeiros sinais de reconciliação, que chega por fim em "Sandcastles" - o momento indubitavelmente Celine do álbum - tremenda balada soul/gospel de travo pop que nos transporta à era de I Am... Sasha Fierce (2008). É tempo de reconhecer a mágoa e seguir em frente, rumo a um novo plural - é o que nos diz o fantasmagórico interlúdio "Forward" em divagações James Blake-ianas.
Trio de luxo reservado para a secção final. Séria candidata a canção do ano, "Freedom" une uma imperiosa Queen B ao régio Kendrick Lamar para uma monumental ode de apoio à comunidade afro-americana contra a opressão que esta enfrenta. Aqui a luta de Lemonade deixa de ser interior e passa a ser em nome de todo um povo - momento histórico para a música enquanto veículo de combate pela igualdade racial. "All Night" representa a vitória do amor verdadeiro e a celebração de uma nova oportunidade. Vive do mesmo espírito de felicidade genuína de "XO" e aponta ao ceú estrelado com o paraíso a perder de vista. "Formation", a fechar o disco, nasce da costela trap de "7/11" combinado com o bounce típico de Nova Orleães, e é a contribuição de Bey para o movimento Black Lives Matter, mobilizando as suas tropas para a defesa dos interesses da comunidade. Ei-la na sua veia mais contestatária e ideologista, consciente da sua herança e orgulhosa das suas raízes.
Se à qualidade das canções adicionarmos a componente visual do disco, Lemonade assume-se como a obra maior de 2016, coerente com a visão e identidade de uma Beyoncé em constante evolução e em contramão com aquilo que se espera de um astro da sua dimensão. Nada menos, portanto, do que uma lenda a cumprir o seu destino.
Classificação: 8,8/10
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