REVIEW: Kim Petras- Clarity


Menos fulminante e significativa que a era néon, Clarity serve como manifesto de intenções da mais entusiasmante estrela pop underground da era digital.  

A hierarquia já não é o que era: Taylor Swift e Ariana Grande ainda são as maiores estrelas pop do seu tempo, mas outros casos há em que a tangibilidade não é a medida de valor de uma carreira. Tomemos Carly Rae Jepsen ou Charli XCX como exemplo: sérios casos de aclamação crítica e culto viral desenvolvido em anos recentes, mas com reduzida expressão nas tabelas. A importância na definição da esfera pop contemporânea é semelhante, apenas o meio e o peso cultural diferem.

Há fortes razões para acreditar que Kim Petras segue a passos largos para um destacado lugar no reino underground de Jepsen e XCX. A história é breve e ainda semi-desconhecida, mas repleta de superação e triunfo: Kim nasceu num corpo errado e tornou-se numa das mais jovens pessoas no mundo a realizar a operação de mudança de sexo, há mais de uma década. Ajustes de identidade completos, não tardou em trocar a cidade de Colónia, na Alemanha, pela L.A. de todos os sonhos e possibilidades.



A estreia oficial e documentada chegava em Agosto de 2017, materializada em "I Don't Want It at All", um single pop brilhante em todos os aspectos, capaz por si só de impulsionar uma carreira como "Just Dance" ou "I Kissed a Girl" o fizeram para Gaga ou Katy Perry. O que se seguiu foi uma emocionante e longa jornada composta por mais dez imaculadas canções entregues gota-a-gota que só ficou completa em Fevereiro passado. Quando demos por isso, tinhamos a playlist pop - sim, porque Petras nunca a chegou a documentar em disco - mais extraordinária desde sabe Deus quando. 

A denominada "Era 1" ou "Néon", encharcada de synthpop, electropop e dance pop que tanto recuperavam influências da década de 80 como dos anos 00, caiu no goto de uma pequena legião online que procurava o ressurgimento da pop tremendamente boa e excepcional que o mundo pós-streaming dominado pelo trap e hip hop não é capaz de proporcionar - nascia ali a nova princesa underground dos bops.

Menos de dois meses volvidos e demos por nós a ser bombardeados por uma sucessão de singles um tanto menos fantásticos, convenhamos, mas cativantes o suficiente para nos fazer continuar a gravitar em torno da órbita de Kimmy, acabando por conduzir ao seu primeiro disco à séria, Clarity de seu nome.



Condensado em quatro temas, o álbum dava um EP fenomenal. Liderado por "Sweet Spot", uma descarga lasciva de nu-disco que recaptura a essência de "One More Time" dos Daft Punk e "Lady (Hear Me Tonight) dos Modjo; com pináculo em "Do Me", uma desavergonhada manifestação de liberdade e disponibilidade sexual que pede para ser dançada agarradinha a um outro alguém sob uma bola de espelhos; com chamariz em "Icy", a sua recriação de "Starboy" ou "Pray for Me" que narra como congelou o seu coração na ressaca de uma separação; e remate perfeito em "Broken", um bop desolador a fazer com sucesso a transição da dance pop efervescente da estreia para uma construção rítmica mais compassada e plena de heranças pop-R&B.

A exploração de ambientes urbanos é, aliás, um dos traços progressivos do trabalho de Petras. Sente-se essencialmente no tema-título, acerca de como a clarividência é um bónus raro e indispensável na vida; em "Blow It All", a feel-good song sobre ostentação e comemoração desbragada que Post Malone não hesitaria em colocar em Beerbongs & Bentleys; na tempestade de lágrimas de "All I Do Is Cry", uma quase ópera trap-pop inconsolável sobre como por vezes a única solução possível é sucumbir à tristeza; e em "Got My Number", um festim rítmico de 808s para-lá-de-divertido que versa acerca de flirtar descaradamente.



"Personal Hell", em ambientes synthpop góticos à la "Tainted Love"/"Personal Jesus", clama pela chegada de um herói garboso que a salve da decadência do seu dia-a-dia; "Another One" alinha pela secção de bops miseravelmente desgostosos, "Meet the Parents" dilui-se na cadência quase humorística de "Bloodline" de Ariana Grande, ambas sobre como não misturar aventuras passageiras com amor para a vida toda, e "Shinin'" é o hino encorajador que tardava no seu cancioneiro, a incitar todos a projectar o seu brilho interior.

Se a era néon deu início ao culto, Clarity é pródigo em contextualizar a música de Kim Petras na idade moderna, à prova de streaming. E é mais do que suficiente para conservar o fascínio pela barbie alemã, ainda que tenha explorado ao máximo as temáticas de (des)amor, sexo, materialismo e hedonismo e esgotado, possivelmente, os créditos da sua parceria com o infame Dr. Luke. Será preciso novo brio, novos colaboradores e a genialidade pop do costume - mas, garantidamente, já ninguém lhe perde o rasto. Woo-ahh!



1. Clarity (7/10)
2. Icy (8/10)
3. Got My Number (8/10)
4. Sweet Spot (9/10)
5. Personal Hell (8/10)
6. Broken (9/10)
7. All I Do Is Cry (7/10)
8. Do Me (9/10)
9. Meet the Parents (7/10)
10. Another One (8/10)
11. Blow It All (7/10)
12. Shinin' (8/10)

Classificação: 7,9/10

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