O funeral do coração em Vulnicura
Ao nono registo de originais a islandesa Björk vê-se a braços com a excruciante separação do seu companheiro de 13 anos, que lhe serviu de mote às 9 canções do álbum – a dor e a angústia como tintas primárias de uma tela pintalgada de emoções contraditórias e exacerbadas, sempre comuns nestas histórias de desvinculação conjugal.
O sucessor de Biophilia (2011) chegou acidentalmente (e de forma pouco inocente, diga-se) à internet dois meses antes da data de lançamento prevista, obrigando a cantora a disponibilizá-lo oficialmente no iTunes e a procurar outra alternativa de celebrar meio século de vida que não com um novo capítulo discográfico. Vejamos o lado positivo: a antecipação da cura das feridas permitirá que estas sarem mais rapidamente e que o disco viva num estado de hype contínuo, por não ter ainda edição física.
“Stonemilker” abre os filamentos de carne com um fabuloso arranjo de cordas e a necessidade latente de expurgar as emoções, as dela e as do conjugue, aparentemente empedernido e com sérias dificuldades de diálogo. “Show me emotional respect”; “I wish to sinchronyze our feelings”, clama a islandesa. São dois pedidos recorrentemente expressos ao longo do disco, demonstrando a necessidade latente de fazer o luto interior e de minimizar possíveis efeitos colaterais subjacentes a quem os rodeia.
“Lionsong” é o mantra de Björk para fazer o caracol sair da casca, acompanhada de arranjos tribais que me trazem à memória “Frozen” de Madonna, por sinal idêntico na temática abordada. Novamente a procura de um estímulo emocional, a ânsia de uma resposta que conduza ao diálogo e ao consequente confronto. “History of Touches” funciona como a terapia regressiva para que Matthew Barney – chamemos o vilão pelo nome – se sinta compelido a dialogar. É uma alusão ao ADN conjugal que fica impregnado na pele para todo o sempre e é também o primeiro tema em que se sente a forte presença do venezuelano Arca, jovem produtor sensação que assume o comando dos botões neste Vulnicura, preenchendo de fragmentos digitais as memórias da relação.
No monumental “Black Lake” encontram-se as artérias deste coração defunto – é o culminar de toda a dor e angústia, transposta que está a fase da incompreensão e da ira. As palavras parecem sair numa cadência arrastada, morosa, algo frágil, e a melodia infinitamente triste traz consigo a promessa de mil Invernos. Um olhar mais atento pelos versos incide alguma luz na origem desta desvinculação emocional (“family was always our sacred mutual mission, which you abandoned”). Uma ponta do icebergue bastante elucidativa. Patente, no fim, surge a capacidade de regeneração (“I am a glowing shiny rocket, returning home”). Que assim seja.
A fantasmagórica “Family” é alusiva à quebra da Santíssima Trindade (Pai, Mãe e Filha) enquanto clã. Há uma certa atmosfera de ritual pagão inerente ao processo da “morte da família”, mas também o cuidado de querer salvaguardar a criança dos seus efeitos nefastos. De certa forma a própria estética sonora modifica-se perante essa compreensão, avançando das trevas em direcção à luz, ao “monumento de amor” que é necessário edificar para que essa premissa se concretize. “Notget” encerra este memorial fúnebre com resoluções evidentes: ambos seguem caminhos separados, acordando que a filha será sempre o (único) interesse comum. São também tecidas profecias de arrependimento (“will you not regret having love let go?”) a que se juntam um sinistro manuseio de cordas orientais, reforçando a intenção vingativa e alarmante. Novamente, Arca é o peão essencial da construção mística.
O derradeiro trio de canções compromete ligeiramente a premissa do álbum, conduzindo o ouvinte por águas menos revoltas mas com menor pH. “Atom Dance” é um bailado electro com Antony Hegarty, o parceiro ideal para as bizarrias melódicas de Björk; “Mouth Mantra” é o gémeo mais pérfido e complexo de “Lionsong”, redundante aqui para o alinhamento - é o elo mais fraco do álbum. “Quicksand”, a peça final, é mais uma escultura para Arca testar os seus hipnóticos engenhos e o momento em que Björk agarra novamente a carruagem. É a cápsula do tempo em que deposita as suas intenções futuras – a necessidade de cultivar paz e harmonia para assegurar o futuro deles (ex-casal), da filha e das gerações vindouras. Uma viagem galáctica pelos anéis de Saturno no ano de 2049.
Mais interessante do que discutir se esta será a melhor obra de Björk em décadas, é compreender que depois do fim vem o recomeço. A possibilidade de regeneração artística e de dar novos mundos ao mundo, algo em que a islandesa tem sido perita ao longo da sua discografia. Com a chegada dos cinquenta e o cicatrizar das feridas aqui carpidas, é pela próxima obra que o mundo deve aguardar com assombrosa expectativa. And then all will be full of love, once again.
Nota do escriba: Eu tinha tudo planeado. Queria ouvir a discografia de Björk por ordem cronológica, até chegar a Vulnicura. Começei há cerca de um mês com Debut (1993), mas faltou-me coragem para seguir em frente. Mal sabia eu a partida que o destino me pregaria. Numa aula de escrita prática, a professora desafiou-nos a fazer a nossa apreciação ao disco. Depois do medo, pânico e horror inerente a tão difícil exercício (digamos que nunca me atreveria a falar de Björk sem estar ciente de que tinha conhecimento necessário para o fazer), consegui escrever este texto em plena aula. Foi uma experiência imersiva, emocional e de luta contra o tempo pela qual terei de passar mais vezes daqui em diante. E valeu muito muito a pena. Venha daí o próximo.
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