Festival da Canção 2019: As considerações


Depois de três emissões televisivas, a 53ª edição do Festival da Canção cumpriu por fim o seu propósito. E importa opinar acerca do seguinte:

1) Mantém-se o espírito e a aposta festivaleira

Foi em 2017 que a RTP reformulou os moldes do Festival, injectando-lhe nova vida ao convidar alguns dos maiores compositores portugueses dos mais diversos quadrantes para assinarem as canções a concurso. O esforço, como é sabido, deu os seus frutos nesse mesmo ano com a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão. Pois se em 2018 todos os olhares da Europa estavam concentrados em nós, seria natural que a pujança não se perdesse. Mas e agora que voltámos ao posto do costume, será que o espírito se perderia? Felizmente não, até porque a RTP investiu demasiado para retornar aos velhos hábitos. O leque de artistas convidados em 2019 pode não ter sido tão sonante, mas deram bem conta do recado. E o Festival não passou despercebido a ninguém. 

2) Ainda há coisas a afinar nos moldes do concurso

Apesar do sistema das semi-finais já vir de longe, sente-se que o canal estatal ainda não percebeu bem como capitalizar o modelo. Ora num ano temos mais de duas dezenas de canções a concurso, noutro já desce para dezena e meia - e fica sempre a sensação de que a coisa poderia ser encurtada e/ou despachada se condensadas numa só emissão. Temos, portanto, meia hora de música e cerca de duas de elementos acessórios. Já para não referir que há demasiados apresentadores envolvidos e uma selecção de jurados questionável - será justo atribuir poder a sete indivíduos com conhecimento/gosto musical? O júri regional deveria ser chamado a votar logo desde as semi-finais, alargando assim a representatividade das escolhas.

3) Acerca das semifinais

Ambas decentes, com ligeira supremacia da segunda. O desfecho da primeira eliminatória era óbvio e não houve perdas a lamentar. Na segunda, fosse por já estarmos mais ligados ao Festival ou por notório acréscimo da qualidade, sentiu-se que foi mais equilibrada. Dan Riverman ("Lava") e, sobretudo, João Couto ("O Jantar") poderiam ter garantido o apuramento. Há que esclarecer também um pouco melhor o propósito dos vídeos de apresentação dos artistas (o que diz o arborismo da intérprete de "Mar Doce" ou o kart cross de Matay?). Percebe-se a tentativa de aproximação ao modelo utilizado na própria Eurovisão, mas nos últimos dois anos foram bem mais proveitosos. De resto, a incapacidade de tornar a emissão interessante do início ao fim. 

4) Uma final trepidante de desfecho esperado

Desde logo marcada pelo ritmo acelerado e de rastilho curto de Vasco Palmeirim e Filomena Cautela - que parelha incrível, a repetir em futuras ocasiões - a final manteve a tónica da descentralização e desceu este ano até Portimão. De certo chamaram os criativos por detrás do 5 Para a Meia Noite, porque não raras vezes sentia-se que estávamos a ver uma versão alargada e de orçamento mais amplo do talk-show de quinta à noite: se em alguns momentos essa garra criativa bafejou a cerimónia de brilhantismo, por outro retirou-lhe algum contexto. E o extenso compasso de espera entre o final das actuações e o anúncio dos resultados podia ter sido bem melhor aproveitado: foi um gosto rever Vânia Fernandes, entre outros, mas porque não fazer tributos como o de Simone Oliveira no ano passado, ou um revisitar de momentos altos de edições passadas?

Os oito finalistas garantiram um desfile de canções bastante decente. Os Calema viram-se livres do triste figurino da semifinal e até pareciam mais confortáveis com a própria canção, ainda que um pouco agarrada ao modelo pop internacional de 2010/2011; o "Mar Doce" de Mariana Bragada era compelativo mas sem chama para a Eurovisão; "Inércia" de Ana Cláudia uma canção pop desafiante que exigia talvez outra componente cénica; Matay é um intérprete dos sete costados mas o seu "Perfeito" tinha a chancela de uma qualquer banda-sonora da Disney de 1997; Surma foi a verdadeira freak de serviço com um quase ininteligível "Pugna" que a exuberância de Conan deixou passar um pouco mais despercebida; "Igual a Ti" de NBC falava ao coração do público em tempos de agitação social; e os Madrepaz trouxeram um bocadinho de um Portugal bucólico cantado por Zeca Afonso ou Fausto, num "Mundo a Mudar" que surpreendeu na votação final.

5) Sobre Conan, o Grande

Muito mal estamos nós quando o Festival não é associado a algum tipo de polémica. Se esta se resumir à escolha da canção eleita, melhor ainda. Divisivo (e também favorito) desde o início, Conan Osíris "nasceu" nestas duas últimas semanas para o mediatismo, e ainda que não convença todos os seus detractores até à chegada a Telavive, é assinalável o quão reduziu essa aversão em tão pouco tempo. "Telemóveis" era de facto a segunda proposta mais arriscada da noite (olá, Surma), mas só temos a beneficiar com um tema tão afastado das margens que junta fado, dancehall, Médio Oriente e afrobeat sem perder a sua linha identitária. Existe espaço para um maior dramatismo cénico, mas por si só já vai causar esgares de espanto e, sim, incompreensão transformada em aceitação por essa Europa fora. E que orgulho é ver Portugal a reconhecer e a abraçar uma proposta tão ousada e disruptiva quanto esta - estamos a levar o futuro à Eurovisão e a esticar os limites do certame um pouco mais. 



O mais difícil já está. Uma classificação dentro do top 10 é bastante possível, mas para tal muito contribuirá o peso da concorrência e sobretudo a caminhada que a canção fizer até lá. Voltamos a testar as águas em Maio.

Comentários

Mensagens populares