'Positions' de Ariana Grande: Vida doméstica
De entre as várias coisas que esperávamos no ano da pandemia, um novo álbum de Ariana Grande não estava entre os planos. Ela que em Janeiro havia justamente rematado a era de Thank U, Next nos Grammys com a actuação ao vivo de "7 Rings" que lhe haviam negado no ano anterior. Mas 2020 aconteceu na sua plenitude e o seu suposto hiato não durou muito.
Primeiro foi "Stuck with U", a colaboração com Bieber nascida para ajudar as famílias dos trabalhadores de primeira linha no combate à Covid-19, num engenhoso plano traçado pelo manager de ambos, Scooter Braun, que se estreou em nº1 nos EUA. Semanas depois a forja de trovões deixava escapar "Rain on Me", uma celebração das lágrimas em tons dance pop noventistas na companhia de Lady Gaga, que resultou num êxito gigantesco para ambas, originando outro nº1 na Billboard Hot 100.
Talvez não existisse mesmo nenhum álbum no horizonte, mas o sucesso de duas colaborações tornava bastante atractivo a ideia do que poderia acontecer caso Ariana voltasse a estúdio e cozinhasse mais um punhado de hits. O último trimestre do ano não acabava, por isso, sem o seu sexto álbum de estúdio, anunciado com uma antecedência de quinze dias - tão secreto e repentino quanto as coisas podem ser na idade digital.
Enquanto Sweetener (2018) e Thank U, Next (2019) continham uma narrativa muito forte, obras de catarse de um período pessoal bastante conturbado e mediático que a conseguiram elevar a novos máximos de carreira pelo caminho, Positions não transporta a mesma carga e apresenta-se como um disco airoso, leve e preguiçoso que serve apenas para nos mostrar como a sua autora está feliz com o seu novo relacionamento e a vida doméstica que tem levado - o que é inteiramente merecido, mas que resulta em momentos musicais algo desinteressantes e naquele que é muito possivelmente o título mais fraco da sua discografia.
"Shut Up" até é um arranque bastante decente (e enganador): um interlúdio pop à boa moda orquestral ("Honeymoon Avenue" e "Moonlight" dizem olá) e cinematográfico, dirigido à massa crítica e detractora mais ocupada em opinar sobre como a vida de Ariana deve ser vivida do que cumprir pacificamente a sua própria existência. "34+35" traz logo os problemas à superfície: uma canção devassa sobre as suas rotinas sexuais, melodicamente fraca e de lírica desinspirada, que jamais devia ter sido promovida a single. E como explicar que a faixa com Doja Cat seja a pior de todo o disco? Pontuada por uma batida disco-house, "Motive" desenrola-se confusa e sem graça, como um pastiche de uma colecção qualquer ultrapassada. Perdeu-se aqui a possibilidade de criar um hit enormíssimo.
"Just Like Magic", por seu lado, é a jóia da coroa de Positions. Um cintilante objecto pop-R&B upbeat que versa sobre como uma filosofia de vida positiva gera por ela mesma consequências positivas para quem a pratica: o good karma de sorriso aberto para Ari. "Off the Table", entoado a meias com Abel Tesfaye, não é tão mal aproveitada quanto a colaboração com Doja, mas não está nem por sombras na liga de "Love Me Harder: é uma slow jam ancorada nos ensinamentos clássicos do R&B, a versar sobre a dificuldade em permitir que o coração sare antes de se atirar a outro relacionamento, mas peca por ser um bocadinho enfadonha. A monotonia prossegue em "Six Thirty", a pop-trap do costume a ornamentar uma canção sobre compromisso e fidelidade a longo prazo.
À semelhança das colaborações anteriores, também "Safety Net" com Ty Dolla $ign passa despercebido: outro momento de R&B melódico que revela a insegurança e a fragilidade de Miss Grande em entregar-se de novo ao amor. As coisas melhoram aos primeiros acordes de "My Hair" - finalmente uma canção acerca da característica física mais proeminente de Ariana - que acaba por ser uma metáfora para a intimidade e vulnerabilidade que está disposta a partilhar com um novo parceiro. Trata-se de uma elegante construção neo soul adornada por cordas, baixo e o seu maravilhoso whistle. Igualmente deslumbrante é a faixa seguinte, "Nasty", a melhor composição trap de todo o álbum que clama por volúpia carnal sem reservas - vive aqui a costela expedita de Sweetener. "West Side", construído sob um sample de "One in a Million" de Aaliyah, vive da mesma ambiência urbana e relaxada, ainda que em termos de narrativa não venha acrescentar nada a Positions.
Nenhum momento será tão divertido e inesperado quanto o disco-R&B à la Austin Powers de "Love Language", encantador na sua passada rítmica bamboleante e na entrega vocal perfumada. O tema-título alinha pelo imaginário sexual de que esta nova era está impregnada, e de facto não tem muito a acrescentar à discografia de Ariana Grande - é o seu pior single de avanço à data, apesar de ter feito clique à 107ª audição. "Obvious" é a feel-good jam que faltava em Positions: um luminoso número R&B que se banha no júbilo de ter voltado a acreditar no amor. E "POV" conclui a audição de forma suprema: uma balada R&B celestial servida com violinos e violoncelos, assente na vontade de se conseguir ver através dos olhos do seu amado, aceitando também as suas falhas e imperfeições. É uma balada magnífica e tecnicamente bem executada, mas aguardamos ainda o seu momento Whitney ou Celine mais à frente na sua discografia.
Passados quatro meses Ariana lançou a versão deluxe do disco, inútil na tentativa de aprimorar uma obra já de si mediana. Liderado por um "Test Drive" supimpa que soa mais a jingle de stand de automóveis do que a canção de proa do seu catálogo, reserva ainda uma remistura evitável de "34+35" com Doja Cat e Megan thee Stallion, o house-R&B catita de "Worst Behaviour" e outra produção pop-trap esquecível intitulada "Main Thing".
Há umas quantas razões para acreditar que este poderá ser o início do declínio comercial e criativo de Ariana Grande, mas talvez tenhamos que esperar até ao próximo trabalho para perceber se foi mesmo uma sentença antecipada ou apenas uma quebra momentânea. Seja como for, é uma pena que depois de dois discos tremendos a curva ascendente tenha sido quebrada por impaciência e precipitação. Positions teria beneficiado certamente com mais tempo de confecção e ponderação. Assim, fica como marca menos digna e notória de um ano que todos também preferimos certamente esquecer.
1. Shut Up (8/10)
2. 34+35 (6/10)
3. Motive (5/10)
4. Just Like Magic (9/10)
5. Off the Table (7/10)
6. Six Thirty (6/10)
7. Safety Net (6/10)
8. My Hair (8/10)
9. Nasty (8/10)
10. West Side (7/10)
11. Love Language (8/10)
12. Positions (7/10)
13. Obvious (8/10)
14. POV (8/10)
Classificação: 7,2/10
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