REVIEW: Christina Aguilera- Liberation


Expressão identitária, ambiência urbana e a inconsistência do costume: Liberation não ficará para a história de 2018. 

Partir para a audição do oitavo álbum de estúdio de Christina Aguilera com a ilusão de que estaremos a assistir a uma segunda (terceira, quiçá) vida da sua intérprete, é contraproducente. Na verdade, a autora de "Beautiful" não é culturalmente relevante há cerca de uma década. Algures entre a pop futurista do mal-amado Bionic (2010) e o esmagador êxito de "Moves Like Jagger" (2011), as massas abandonaram-na e Aguilera passou a figurar apenas enquanto ícone geracional, ultrapassada pelas suas sucessoras e castigada pelos cruéis ditames a que a máquina pop veta as figuras femininas. 

O maior inimigo de Xtina será, contudo, o tempo. Aquele que lhe levou a criar um irmão mais novo para Lotus (2012) e aquele que perdeu envolvida na mentoria aos candidatos em seis temporadas do The Voice, ambos tentativas algo falhadas de reconquistar o carinho da América. O longo tempo de gestação criativa incluiu também um segundo casamento e um segundo rebento, que certamente a mantiveram entretida. Mas, enquanto isso, víamos as oportunidades de Aguilera retornar à vida artística a serem constantemente adiadas, num sem fim de promessas vazias. 

Tal não nos impede, porém, de conservar uma réstia de esperança de que desta vez as coisas possam ser diferentes. Afinal, vivemos na mesma dimensão em que Britney Spears recuperou fôlego artístico após ter sobrevivido ao meltdown de 2007, e em que também Mariah Carey renasceu das cinzas depois de vários fracassos comerciais, numa altura em que se aproximava dos quarenta de idade.

Liberation acaba por ser o reencontro de Xtina com as suas fundações de artista, a cantar sobre os mantras de libertação, identidade e emancipação feminina que fizeram de Stripped (2002) uma obra de referência geracional, retendo a tónica R&B deste e explorando-a em texturas mais próximas do hip hop. No fundo, um disco muito em consonância com os apetites da temporada e que acaba por ser o seu registo mais focado e autêntico lançado esta década - ainda que não alheio a inconsistências e percalços.



Um deslumbrante interlúdio orquestral dá o mote ao álbum, honrando assim uma antiga tradição da sua autora. "Where are you? Are you there? Remember" - escuta-se a dada altura, com Christina em busca de "Maria" (que é na verdade o seu nome do meio), uma parte de si que julgava perdida. Faz-se dessa forma a transição para o tema com o mesmo nome, numa clara alusão à personagem principal de Música no Coração, também ela um espírito livre à procura do seu caminho. Construída com recurso a um sample de uma das primeiras gravações a solo de Michael Jackson e à produção robusta de Kanye West - a canalizar os dias de The College Dropout - manifesta uma certa desilusão e arrependimento por algumas cedências feitas no passado, mas mostra determinação em recuperar a autenticidade perdida.

Com Maria redescoberta, é tempo de rugir. "Sick of Sittin'" pode tanto ser interpretada como uma declaração de revolta contra o patriarcado e as expectativas sociais como pelo tempo investido na cadeira de mentora do The Voice ("it's good pay, but it's slavery/ I can't live with these chains on me/ I have to get free"). Anderson .Paak concede-lhe uma retemperada construção de funk-rock percussivo que rasga como "Black Cat" de Janet Jackson e aspira ser como "Fighter". Não menos obstinada é a canção que se segue, "Fall in Line", valente hino de empoderamento contra a opressão feminina que pretende dar continuidade à mensagem unificadora de "Can't Hold us Down" e que assenta numa interessante produção soul/R&B e na avassaladora fusão vocal com Demi Lovato, numa espécie de passagem de testemunho geracional.

Liberation atira-se para os rochedos com o dancehall lento do tépido "Right Moves", validado mas não salvo pela inclusão de duas artistas jamaicanas, redimindo-se com os três temas seguintes. "Like I Do" desperta chamas com o seu beat garage/R&B futurista que serve de combustão às investidas líricas de GoldLink e Aguilera, num aceso flirt que acaba dominado por Xtina; enquanto "Deserve", magoada súplica entre dois amantes intempestivos em sofrimento, luta taco-a-taco com este último pelo título de melhor canção do álbum, comandada por uma produção R&B espacial tão 2034 do sempre magnífico MNEK - presente também nos coros como um fantasma distante - e pela lírica tão bem esquadrinhada por ele e Julia Michaels. A belíssima "Twice" fecha o fantástico combo com a sua ambiência gospel a proporcionar uma experiência quase espiritual: nela Aguilera questiona o sentido da vida com base em episódios idos de amor e de perda que a edificaram e pelos quais se sente grata.



"Accelerate" vive da produção maximalista de West e outra meia dúzia de estetas, uma tribal amálgama hip hop/club sobre sexo, assistida por um muito anestesiado Ty Dolla $ign e um não menos depravado 2 Chainz. Causa sensação, mas falta-lhe tempero e moderação nas ideias. "Pipe", pelo contrário, tem tudo no sítio: estrelar produção de Sango, Neenyo e Che Pope, que concedem a Xtina uma relaxada e sensual composição R&B que não soa literalmente a nada que se escute por aí. Serve de montra a uma interessante entoação vocal de Christina e rampa para o debute - nada mau, nada mau - do rapper XNDA, que muitos acreditam ser o alter ego artístico do piloto de F1 Lewis Hamilton.

A passos largos do fim encontramos um "Masochist" que se atormenta pela dor infligida de um romance, recordando a pop atmosférica de Phil Collins e os traços menos agradáveis de Lotus. Álbum de Xtina que se preze não o é sem a sua power ballad - "Unless It's With You" fica propositadamente guardada para o fim, na esperança de nos levar ao altar ou ser a primeira dança de muitos casais tal como "Thinking Out Loud" ou "Perfect" de Sheeran. É bonita e superiormente cantada, mas Liberation passava bem sem ela.

Seis anos não justificam o tempo de concepção deste álbum. A maturação sobrecarregou-o de conceitos e a hesitação impediu-o de ser mais arrojado. É decididamente mais apurado e genuíno que Lotus, mas sofre da mesma inconsistência de Bionic. Nos seus melhores momentos, porém, é a continuação que Stripped pedia. Talvez seja tempo de Christina Aguilera deixar de perseguir tendências e começar a almejar a repertório intemporal, aperfeiçoando a visão artística que vem a desenvolver há duas décadas. Se o processo não lhe tomar outros seis anos, melhor ainda - a justiça e a aclamação não podem esperar tanto.


Classificação: 7,2/10

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