2018, Um Balanço Sónico- Os Discos


E porque a música ainda passa essencialmente por obras pensadas e delineadas para serem escutadas como um todo, impera fazer também um balanço dos melhores discos que agraciaram os ouvidos do escriba. Foram às centenas, mas só dez merecem dedicatória e outros dez menção honrosa:


1º Troye Sivan- Bloom


Sinto que passei o ano inteiro na companhia deste álbum: decididamente metade do tempo a ansiar por ele e a conhecê-lo aos poucos, e a outra metade a deleitar-me com a obra completa. Estava destinado a ser o meu disco favorito do ano assim que "My My My!" rasgou o éter com a sua desafiante expressão identitária em bombástico revestimento electropop. "The Good Side" tratou de comprovar o amadurecimento artístico de Troye, numa mui emotiva reflexão pós-desvinculação romântica em tons Sufjan. "Bloom" floresceu com a Primavera e tornou-se no equivalente queer a "Teenage Dream", "Dance to This" surgiu no Verão para prolongar o encanto com o seu sedutor jogo de poliritmos e influências 80s, enquanto o épico de estádio "Animal" selou os votos com promessa de amor eterno.

"Seventeen", "Postcard", "Plum", "What a Heavenly Way to Die" e "Lucky Strike" desvendaram o resto de Bloom com estrondo, cumprindo assim o seu desígnio. Não houve em 2018 outro álbum com canções pop tão imaculadas, de identidade vincada e com o desejo à flor da pele: assistimos, pois, ao despontar do maior ícone queer da sua geração e à transformação de Troye num dos autores pop mais notáveis do seu tempo. Avé Sivan.


2º Rae Morris- Someone Out There


Someone Out There, como o título indica, nasce da necessidade de estabelecermos uma conexão com alguém que sinta o mesmo que nós, mas sobretudo da vontade de arriscar e do pensamento fora-da-caixa da sua intérprete. Algo que Rae já fazia tímida, mas corajosamente, no anterior Unguarded (2015), mas que conhece um novo significado ao álbum nº2. Há uma beleza intrínseca na superação de obstáculos e na quebra do molde de "cantautora delicada ao piano" que canções tão magnânimes quanto "Push Me to My Limit", "Reborn", "Do It" ou "Rose Garden" tão bem expressam - pode levar-lhe uma vida, mas se Rae Morris continuar a assinar trabalhos tão extraordinários, a aclamação acabará por chegar.


3º Ariana Grande- Sweetener


Vamos sempre relembrar 2018 como o ano em que Ariana Grande atingiu a aclamação crítica e o respeito dos seus pares. E foi Sweetener a estar na origem de tudo: o primeiro álbum em que Ariana se permitiu a deixar os hits e os produtores infalíveis para segundo plano, de modo a poder dedicar-se a canções de maior textura, arrojo e imprevisibilidade que nascem da convalescença de um trauma vivido em público, e que ela escolhe enfrentar com positivismo, esperança e amor.  O tema-título, "The Light Is Coming", "Goodnight n Go" ou "Get Well Soon" representam novos máximos de carreira. 


4º Rosalía- El Mal Querer


Possivelmente a melhor revelação espanhola da última década, Rosalía assina aqui um trabalho conceptual e experimental brilhante, que só peca por ter sido lançado com o calendário já tão avançado. Aquilo que ao primeiro impacto parece um enigma, vai deslindando a sua magia audição após audição: o conceito de fusão entre flamenco, pop, electrónica e sensibilidades R&B é excepcional, bem como notável é o seu propósito de renovar um género tão tradicional, quase decrépito, alinhado com uma história de amor tóxica que nos é apresentada por capítulos. E isto é só o começo de uma nova dinastia por ela instaurada - vieste tu, feiticeira, inundar-nos de vida. 


5º Years & Years- Palo Santo


E ao segundo tomo dos Years & Years, tudo é amplificado: o binómio espiritualidade/desejo explorado na estreia ganha relevo, as canções revestem-se de maior ressonância emocional, exoesqueleto dance pop e refrões orelhudos, o próprio Olly Alexander torna-se numa confiante voz da comunidade queer, e a ambição do trio expande-se para o imaginário sci-fi com que decidiram ilustrar Palo Santo. Em contrapartida, perde-se algum do balanço R&B e da estranheza indietronica de Communion (2015), mas quando somos invadidos por temas tão instantâneos quanto "Hallelujah", "Preacher" ou "Up in Flames" (inexplicavelmente relegada para a edição deluxe), a margem de recusa é nula. 


6º Cardi B- Invasion of Privacy


É facilmente a surpresa do ano em matéria de discos. Já todos nos havíamos deleitado com "Bodak Yellow" e as dezenas de colaborações em que foi participando entretanto, e ainda assim ninguém esperava um primeiro álbum tão estupendo. Invasion of Privacy vive de um repertório íntimo e intensamente divertido à prova-de-bala, de certeiras escolhas de produtores e colaboradores, mas sobretudo do tremendo carisma de Cardi B, que tudo "vende" com inegável confiança. E resulta porque há já demasiado tempo que Nicki Minaj reinava no campeonato feminino sem concorrência à solta. O hip hop agradece. 


7º Lily Allen- No Shame


Para que não restem dúvidas, No Shame é um álbum absolutamente fantástico. Funciona quase como uma sessão de terapia em que Lily Allen se analisa a si mesma, bem como ao mundo que a rodeia - e que mudada está aquela que há quatro anos assinava o tépido e levemente confuso Sheezus. Do corte com as influências tóxicas do passado em "Trigger Bang", passando pelo desmoronar do casamento em "Lost My Mind" ou "Apples", pela culpa maternal da lacrimejante "Three", até ao dedo do meio erguido contra o sistema do patriarcado em "Cake", o álbum preenche-se de confissões, verdade e coração a rodos. Que a sobriedade a acompanhe por muitos anos.  


8º Florence and the Machine- High as Hope


Tem sido uma jornada e pêras para Florence e a sua máquina. Depois de três discos que a colocaram merecidamente no Olimpo da música indie, não se sabia muito bem o que esperar de um quarto álbum. High as Hope é seguramente o registo mais sóbrio e discreto do grupo que vive de um abrandamento da intensidade que sempre pautou o seu trabalho, em prol de canções mais minimalistas que se espraiam sobre desgosto, laços de família e solidão. Não mora aqui nenhum "Dog Days Are Over", "Shake It Out" ou "Ship to Wreck", mas há beleza e encanto no lado mais intimista da banda. E Florence Welch continua uma compositora e intérprete dos sete costados, por isso não há como não aclamar. 


9º Christine and the Queens- Chris


Enquanto a estreia de 2015 pode ter passado despercebida, ninguém ficou incólume à passagem do furacão Chris. Há toda uma revolução identitária a acontecer ao longo deste segundo disco de Christine and the Queens, que analisa os conceitos de masculinidade, feminilidade, poder e vulnerabilidade em canções de embrulho pop/funk e electropop de rastilho curto, com a particularidade de serem das mais assinaláveis a terem saído de França nesta última década. "La Marcheuse", "5 Dollars" e "Goya ! Soda !" são pontos altos. 


10º Justin Timberlake- Man of the Woods


Não correu nada bem a aventura na floresta de Justin Timberlake, aqui a conhecer o primeiro fracasso comercial do seu percurso. Man of the Woods não é um mau álbum, muito pelo contrário, antes uma acidentada experiência de fusão que o público não estava preparado para receber. O timing do projecto não foi o melhor e o disco também não foi trabalhado da melhor forma (má escolha de singles e uma campanha promocional que cessou de forma abrupta), mas há que louvar a tentativa de incorporar na habitual mistura de pop, soul e R&B elementos de funk, country e música sulista, que acabam por traduzir as heranças de JT. É sobretudo um disco de exploração artística e transição para outros patamares, que não belisca em nada o legado que tem vindo a construir ao longo dos últimos vinte anos, abrindo ainda mais possibilidades e horizontes para os próximos vinte.


Outros títulos:

11º Tinashe- Joyride
12º Tove Styrke- Sway
13º Ella Mai- Ella Mai
14º Nao- Saturn
15º Aurora- Infections of a Different Kind (Step 1)
16º Christina Aguilera- Liberation
17º Alessia Cara- The Pains of Growing
18º Laurel- Dogviolet
19º Sofi Tukker- Treehouse
20º Camila Cabello- Camila

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