'Smile' de Katy Perry: Não é o Fim do Mundo

 


A queda de Katy Perry tem sido bastante ampla e documentada. Uma que começou ainda antes de cumprir uma década de carreira, com o malfadado Witness (2017), um álbum inconsistente num período que mais tarde se veio a saber ter sido bastante turbulento na sua vida. Mas nenhum percurso na pop é totalmente desprovido de mácula - de modo que ficámos todos a torcer pelo seu regresso triunfal.

Katy começou a tentar dar a volta por cima logo no início de 2019. "365", uma subtil mas memorável colaboração dance pop com Zedd, munida de uma dispendiosa ilustração sci-fi, poderia ter virado o jogo, mas o público não quis aclamar. Pouco tempo depois, vendo que "Con Calma" de Daddy Yankee se tornaria no maior êxito latino desse Verão, saltou a bordo da remistura, mas a febre de "Despacito" já havia passado. 

Até que chegou "Never Really Over" e o coração de todos os fãs saltou uns quantos batimentos. Uma fenomenal canção turbo-pop sobre as intermináveis linhas do coração, munida de um refrão tão supercalifragilisticexpialidocious que faria até o mais profundo detractor pensar duas vezes numa conversão à causa de Perry. Era um novo e entusiasmante capítulo na vida e carreira de Katy. E por instantes, a redenção parecia possível.


As coisas pioraram antes de voltar a melhorar. "Small Talk", uma canção madura mas inofensiva sobre o constrangimento entre antigos parceiros, não foi um sucessor à altura. "Harleys in Hawaii", uma cálida e sensual composição pop de inflexão reggae que funcionou como a continuação espiritual de "Teenage Dream", chegou fora de época, mas é ainda a oferenda mais interessante e inesperada na caminhada até Smile. E até "Cozy Little Christmas", a sua contribuição natalícia da estação de 2018, ganhou um vídeo e alguma tracção comercial na última quadra festiva.

Ainda antes de darmos 2020 por cancelado, Katy deu-nos a notícia da maternidade em "Never Worn White", o mais bonito anúncio musical de uma gravidez desde "Someday (I Will Understand)" de Miss Spears, e a sua balada mais robusta e emotiva desde "Unconditionally". Dali, tornou-se na grávida mais prolífica e trabalhadora que o mundo da pop jamais viu: "Daisies" brotou no final da Primavera, uma libertadora canção pop acústica cantada no fio da navalha, acerca de não abdicar dos princípios e dos sonhos que escolhemos no caminho para a felicidade - e nascia aí oficialmente a era de Smile


"Yeah, I'm thankful / scratch that, baby, I'm grateful / gotta say it's really been a while / but now I got back that smile" - se há algo que o álbum e, em particular, o tema-título - uma radiante infusão disco pop na linha de "Walking on Air" ou "Birthday" - nos indicam, é que são tempos de luz e positivismo para a sua intérprete, de novo reunida com Orlando e com a pequena Daisy Bloom nos braços. A narrativa é agora bem mais feliz, com a moldura de família feliz a dar pano para algumas temáticas do disco, mas Perry ainda não descobriu muito bem como evoluir da versão gloriosa de artista de top 40 que perdeu o seu trono.

"Cry About It Later", sobre guardar as mágoas para depois do deboche, esgota o seu encanto e a sua mensagem carpe diem em menos de dez segundos. "Teary Eyes", a sequela, é um tanto anímica na tentativa de pertencer ao clube dos bops dance pop esfuziantes marejados de lágrimas; "Resilient", que também poderia ter intitulado este seu álbum nº5, é a versão evolutiva e mais sóbria de "Firework", igualmente assinada pelos Stargate dez anos antes, dada a sua mensagem de perseverança e auto-estima; enquanto "Only Love" recebe o título de mais genérica do disco, uma faixa de amor incondicional perante a hipótese de lhe restarem apenas horas de vida.


Mas quando Katy encontra a sua essência pop, é impossível não nos sentirmos entusiasmados. "Champagne Problems", dance pop elegante com heranças disco via 70s, celebra a capacidade de superar as adversidades enquanto casal e ter apenas problemas supérfluos para lidar; "Not the End of the World" é tudo o que Witness quis ser e não conseguiu, uma sofisticada produção electropop sci-fi que parece ser o seu mantra para o afundanço que a sua carreira sofreu nos últimos anos ; e "Tucked" canaliza a era de Prism (2013) como nenhum outro: uma para-lá-de-divertida construção disco-pop upbeat sobre fantasiar secretamente por alguém proibido.

"What Makes a Woman" eleva a sua condição de cantautora a novos patamares: uma canção sobre a condição feminina dedicada à então futura filha, que só beneficiaria se prolongasse a sua duração e a atmosfera country-folk. There it is, Katheryn - talvez seja por aqui o caminho a seguir no pós-maternidade e no pós-declínio.

Smile não é o álbum da redenção de Katy Perry, mas antes um álbum de transição, enquanto futura mãe e mulher de família que procura crescer com o seu público e descobrir novos horizontes artísticos, com maior ou menor sucesso. Vamos apreciá-lo pelo que é, uma obra um nadinha mais focada e bem menos nublosa que o disco anterior. E vamos sobretudo apreciar o esforço hercúleo de Katy em não deitar a toalha ao chão, mesmo sendo alvo de chacota um pouco por toda a internet. Como na carreira, como na vida, nunca nada está realmente acabado. O fim do mundo pode esperar. 


1. Never Really Over (9/10)
2. Cry About It Later (6/10)
3. Teary Eyes (6/10)
4. Daisies (7/10)
5. Resilient (6/10)
6. Not the End of the World (8/10)
7. Smile (7/10)
8. Champagne Problems (7/10)
9. Tucked (8/10)
10. Harleys in Hawaii (9/10)
11. Only Love (5/10)
12. What Makes a Woman (7/10)

Classificação: 7,1/10

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