'Folklore' de Taylor Swift: A nobreza da escrita



Parecia tudo tão claro. "Cruel Summer" seria o evidente quinto single de Lover, ainda antes mesmo da chegada da estação estival, coincidindo com o início da digressão europeia de suporte ao álbum, que deveria ter passado por Portugal. Até que 2020 aconteceu na sua plenitude. 

Taylor Swift foi dos primeiros astros a compreender a dimensão do problema e a cancelar a totalidade das datas que tinha agendadas, ainda antes mesmo das promotoras serem obrigadas a deitar a toalha ao chão, e por ironia do destino o seu calendário editorial não poderia estar mais em sintonia com a previsão do pior Verão das nossas vidas. Mas Taylor tinha outros planos em mente. Folklore aconteceu. E subitamente as nossas vidas melhoraram um bocadinho.

Tal como 1989 havia surgido de uma necessidade de tentar escrever e soar de maneira diferente, Folklore foi o resultado da sua jornada de isolamento, um escape criativo para a experiência surreal que atravessámos, escrito e gravado de forma remota em total secretismo, apenas com os contributos de Aaron Dessner, dos The National, e do sempre bem-aventurado Jack Antonoff. 

E a verdade é que catorze anos e sete álbuns volvidos, Taylor Swift estava a precisar de um abanão. Passavam-se seis anos desde a sua mutação pop, e apesar de nunca ter deixado de ser um colosso de vendas, a Taylor de massas já não mexia como antigamente. A pandemia pode ter-lhe trocado as voltas, sim, mas nenhuma outra estrela pop a geriu tão bem em seu favor.


Este seu oitavo disco é uma total reinvenção, mas sobretudo uma forma de Taylor lembrar a si e ao mundo o porquê de ser considerada uma magnífica compositora - Folklore condensa a melhor colecção de canções alguma vez escritas por si ao longo da sua carreira. Prosas belas, vívidas, contemplativas, algumas ficcionadas, outras nascidas da observação em redor, mas sempre magníficas. 

A introdução assombrosamente encantadora ao som de "The 1" transporta-nos de imediato para o imaginário da casa perdida na floresta, onde Taylor se depara com os fantasmas de relacionamentos antigos, cujas passagens recorda com nostalgia e carinho, na eterna possibilidade do que poderia ter sido, sob ténues notas de piano e arranjos indie pop minimais. É uma abordagem madura que aqui adopta, de narradora conformada com o seu passado e feliz com o seu presente. "Cardigan", por seu lado, é o primeiro acto do denominado Teenage Love Triangle que narra a história de amor vivido entre as personagens James e Betty, correspondendo ao momento em que esta última contempla o fim da relação, apaziguando-se nas doces memórias que conserva do seu amado - trata-se de uma balada indie folk/rock inspirada no universo sónico da banda do seu produtor, que revela deslumbrantes texturas a cada nova audição.


O legado de Rebekah Harkness, em tempos uma das mulheres mais ricas da América, cuja mansão Taylor adquiriu há uns anos, vive em "The Last Great American Dynasty", indie pop de fina casta que estabelece vários paralelismos entre as narrativas errantes que os media construíram para ambas, funcionando como uma sátira e herança de status ("I had a marvelous time ruining everything"). Bon Iver surge em "Exile" para lamentar o vazio deixado pelo término de uma relação - o seu tom de barítono cavernoso contrasta com o de Cinderela amargurada de Swift, ambos em diferentes etapas do "luto", até que o melodrama indie folk atinge o seu clímax e se prolonga talvez um nadinha mais do que o necessário. A ambiência dream pop/gótica de "My Tears Ricochet" alude à disputa judicial com o seu antigo patrão da Big Machine Records, invocando um imaginário fúnebre que é complementado por arranjos soturnos, mas logo à espreita está o brilho caloroso de "Mirrorball", estupenda composição folk de sensibilidades dreamy que versa sobre a multiplicidade de facetas e a vulnerabilidade inerente a uma entertainer que é também escritora de canções.

Sentimos o sabor de folhas sopradas ao vento no redemoinho emocional que é "Seven", em que escutamos Taylor num registo mais agudo que o costume, quase ferido, utilizado para recordar fragmentos de memórias de uma amiga de infância com uma vida conturbada, cujos problemas achava capaz de resolver na sua inocência de criança. A memória de um amor intenso mas fugaz de Verão conduz-nos à brisa leve de "August", o segundo acto do Teenage Love Triangle que introduz uma nova personagem feminina na equação amorosa de James e Betty, enquanto peão que se mostrou incapaz de conservar o amor deste, pelo simples facto do seu coração não lhe pertencer - é o momento de ouro de Jack Antonoff em Folklore. Em "This Is Me Trying", a unir uma qualquer ponta entre Lana Del Rey e Beirut, Swift senta-se no banco dos réus e assume culpa pela ruína de uma relação, bem como o compromisso sério de tentar dar a volta por cima, um pouco à semelhança do que expressava em "Afterglow". 


O fogo crepita com a lenha confessional de "Illicit Affairs", a progressão mais emotiva de "Dancing with Our Hands Tied", que nos dá uma leitura empática de um caso de infidelidade, ao qual Taylor não será alheia. Muito possivelmente essa narrativa conduz-nos a "Invisible String", folk gentil e delicada assente no mito asiático de que estamos ligados à nossa alma gémea por um singelo fio vermelho inquebrável, e que no caso de Swift a trouxe até Joe Alwyn. "The Man" ganha uma sequela mais contundente em "Mad Woman", que narra a história de uma viúva que se decide vingar contra todos aqueles que a ostracizaram, mas que no fundo é uma alegoria para as suas contendas contra Scooter Braun e Kanye West. A fúria silenciosa traz também ecos de "I Did Something Bad" e o primeiro "fuck" da carreira de Taylor. A atmosfera alivia para dar lugar ao nevoeiro alado de "Epiphany", uma espécie de canção-tocha em honra de todos aqueles que têm estado na linha da frente no combate à pandemia, e que parte do legado do seu avô enquanto veterano da II Guerra Mundial.

"Betty" entra em cena e rouba-nos o coração ao primeiro acorde de harmónica. Absoluto ponto alto de Folklore e emocionante throwback às suas raízes country, é o desfecho do Teenage Love Triangle contado da perspectiva de James, que não sabe como recuperar o amor da sua vida depois do flirt de Verão com a figura feminina de "August" ("I'm only seventeen, I don't know anything, but I know I miss you"). Nunca saberemos se o casal se reconcilia, apenas que nos sentimos na pele das personagens ao ponto de acreditarmos que aquele enredo é também o nosso. Não há poder mais belo que uma canção possa transportar. Em "Peace" está a artéria emocional do álbum: um dedilhar acústico acompanhado de um pequeno sonar constante que serve para Swift contemplar a fragilidade do seu relacionamento perante o forte mediatismo da sua carreira, e para nos entregar alguns dos versos mais confessionais do seu percurso ("give you my wild, give you a child"). "Hoax" leva-nos para o mundo dos sonhos com o seu piano de embalar, ainda que descrevendo uma relação tóxica - esperemos que não autobiográfica - em que sente que vale a pena insistir. 


Contemplamos uma última vez a relva comprida e o céu tingido de nuvens ao estacionarmos junto a "The Lakes", presente apenas na edição deluxe do disco, e em que encontramos Taylor no seu apogeu shakespeariano, versando sobre a sua escapadela romântica à região de Windermere, em Inglaterra, e fantasiando sobre um mundo livre de redes sociais. É uma conclusão mais que perfeita.

Não há muito mais que se possa dizer acerca de Folklore, a não ser que tem o condão de renovar o amor pela arte de Swift, tornando-a transversal a vários credos, tribos e idades, como até aqui ainda não havia acontecido. Atribuam-lhe Grammys, Polaris, e estatuetas mil, integrem-no como parte do património imaterial da humanidade. E nunca, mas por nunca, mesmo, a voltem a subestimar enquanto produtora e compositora das suas próprias canções. Estas perdurarão até à eternidade. Palavra de escriba. 

1. The 1 (10/10)
2. Cardigan (10/10)
3. The Last Great American Dynasty (9/10)
4. Exile (8/10)
5. My Tears Ricochet (8/10)
6. Mirrorball (9/10)
7. Seven (10/10)
8. August (10/10)
9. This Is Me Trying (9/10)
10. Illicit Affairs (9/10)
11. Invisible String (9/10)
12. Mad Woman (9/10)
13. Epiphany (9/10)
14. Betty (10/10)
15. Peace (10/10)
16. Hoax (8/10)

Classificação: 9,2/10


PS: Sabe Deus o quanto adiei falar deste álbum, por ser tão denso, bonito, significativo e difícil de transpor por palavras. Acredito mesmo que nos salvou de 2020, dando-nos esperança e escapismo como nenhum outro. Espero que se revejam na sua leitura, e encontrem também alguma clareza e conforto nela. Obrigado por tudo, uma vez mais, querida Taylor. 

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