'Heaven & Hell' de Ava Max: A régua e esquadro
Ava Max não será nem a primeira nem a última artista feminina a sofrer as consequências de se estrear com um grande hit pop - mas foi a primeira em muito tempo a ter que viver não só com esse fardo, mas também com as sucessivas comparações a Lady Gaga, que complicaram mais do que ajudaram à sua trajectória.
Talvez por isso tenha passado os últimos dois anos a tentar provar que valia mais do que o seu penteado assimétrico. Foram necessários cerca de uma dezena de singles, uns mais sonantes que outros, mas a norte-americana lá conseguiu gerir relativamente bem a espera e sustentar minimamente o hype para que, volvido tanto tempo, ainda estejamos na expectativa que Heaven & Hell seja de alguma forma o The Fame do início da nova década.
Se não contarmos com a capa francamente má a fazer lembrar uma tentativa de carreira pop de Morticia Addams na década de 90, nada foi deixado ao acaso neste disco de estreia. Da produção cuidada e extremamente sólida do canadiano Cirkut, ex-pupilo de Dr. Luke, até ao conceito de "céu" e "inferno" que divide o registo em duas temáticas e ambientes sonoros.
Tudo muito aprumado, mas não o suficiente para nos fazer esquecer a principal falha do disco: a ausência de personalidade. Por muito que estas canções se aproximem da essência pop de um "Just Dance" ou "Poker Face", ficamos com a sensação de que poderiam ser cantadas por qualquer outra contemporânea sua. É pop traçada a régua e esquadro, que cumpre o seu propósito, mas para além de não deixar sabor nem lembrança à sua passagem, nada nos revela sobre quem a canta.
Do dito lado angelical, é "Kings & Queens" quem mais resplandece: uma triunfante e teatral construção dance pop sobre empoderamento feminino em contexto medieval que sampla "If You Were a Man (And I Was a Woman) de Bonnie Tyler, que conhecemos mais comumente em "You Give Love a Bad Name" dos Bon Jovi. "Naked" soa a uma balada sintetizada midtempo que escutaríamos no disco de estreia de Christina Aguilera: um pouco menos de maquinaria e mais vulnerabilidade não lhe ficaria mal, contudo. "Tattoo" soa efectivamente a Gaga inaugural, mas é liricamente vazia e juvenil; enquanto "OMG What's Happening" é a casca de banana do alinhamento, uma pobre amálgama disco que nunca deveria ter chegado a single e que parece uma má desculpa para transformar uma legenda do Twitter em canção.
"Call Me Tonight" surge no limbo da qualidade, misto de Camila Cabello com o seu riff latino e de Britney Spears com a sua aura de inocência diabólica; a velhinha "Torn" vê-a dividida entre ficar numa relação ou terminá-la de vez, em assertiva passada dance pop de heranças disco e um irrecusável sample de "Gimme! Gimme! Gimme! (A Man after Midnight)" dos ABBA na algibeira. E sentimos a pulsação a acelerar com as doze badaladas de "Born to the Night", reconstruída a partir da cartilha de "Major Tom (Coming Home)" do alemão Peter Schilling, para manifestar a sua imensa sensação de pertença à noite e a tudo o que a envolve - Heaven & Hell não precisa de mais singles, mas que Ava não se esqueça dela caso venha a ser necessário, porque é genuinamente boa.
Na descida às catacumbas a viagem consegue ser um nadinha menos bem-sucedida, em parte porque a paisagem já é familiar. "Sweet but Psycho" e "So Am I" deviam ter sido relegadas para faixas bónus: a primeira fez-lhe merecer o estatuto de revelação feminina mais promissora da pop com devido alarido, enquanto a segunda não passa de uma réplica demasiado calculada e genérica a nível lírico (talvez o seu maio erro), apesar de melodicamente forte. Apenas "Salt" deveria ter passado no teste: favorita dos fãs desde o início, é o equivalente ao carrossel pop de um "I Will Survive" ou "Dancing on my Own", a erguer-se em floreados orquestrais e disco numa mensagem de fortalecimento pós-separação.
"Who's Laughing Now" é facilmente a faixa mais distintiva e aguerrida do alinhamento: uma sólida mas inflamada construção dance pop de balanço reggae via Ace of Base que recorda memórias de bullying e manipulação agora transformadas numa volta de vitória desafiadora. "Belladonna" é a única a justificar o seu lugar entre as trevas - a crepitar em fogo azul e pano de fundo (novamente) teatral, e a comparar o seu amor ao da planta medicinal tóxica a que deve o nome. "Take You to Hell" é demasiado feliz para pertencer a estas bandas, e "Rumors" traz algumas influências EDM para cima da mesa, mas esgota a sua proposta em duas estrofes e poucos drops.
O plano da longa gestação passava por desenvolver Ava Max e potenciar o seu sucesso internacional, mas chegamos à conclusão que Heaven & Hell poderia ter saído em 2018 ou 2019, que o efeito seria o mesmo - será preciso mais que isto caso se queira tornar numa presença permanente da configuração pop. Perdoado o atraso e a hesitação da primeira tentativa e acreditando que há espaço para melhorar, resta esperar que Ava não tarde muito a entregar-nos o seu The Fame Monster.
1. Heaven (7/10)
2. Kings & Queens (8/10)
3. Naked (7/10)
4. Tattoo (7/10)
5. OMG What's Happening (5/10)
6. Call Me Tonight (6/10)
7. Born to the Night (8/10)
8. Torn (7/10)
9. Take You to Hell (6/10)
10. Who's Laughing Now (8/10)
11. Belladonna (7/10)
12. Rumors (6/10)
13. So Am I (7/10)
14. Salt (8/10)
15. Sweet but Psycho (8/10)
Classificação: 7,0/10
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