REVIEW: Lily Allen- No Shame


No Shame convive com remorsos, lágrimas e caos em redor, mas espelha também a verdade e a identidade de Lily Allen naquele que é o seu melhor trabalho em mais de uma década.

"I tried to keep an open mind / I feel like I'm under attack all of the time / I'm compromised / My head can't always hold itself so high / What if inside I'm dying? / Every night I'm crying / And even if I died trying / I bet you'd probably quite like it". Os versos arrancados da estrofe introdutória de "Come on Then" - pedaço ciber-espacial de trip hop, parte magoado, parte desafiador, em que Lily não só confronta os seus detractores, como confessa os seus dilemas e roga por um cessar fogo - são a montra perfeita para o estado de alma de No Shame.

A autora de "Fuck You" ou "Hard Out Here" ainda mora por aqui, mas está decididamente mais madura e ferida. O bombástico mas algo desinspirado Sheezus (2014) trouxe-lhe uma crise de identidade a que a entrada nos trinta e a dissolução do seu matrimónio também não terão sido alheias. Servindo-se da escrita como terapia para examinar a sua relação consigo própria, mas também com o ex-marido, as filhas, a fama e o seu passado, Lily Allen construiu o seu álbum mais honesto e emocionante em muito tempo, encontrando de permeio o caminho para a realização artística e pessoal que há tanto lhe escapava.



No Shame parece obedecer a três capítulos cronológicos: confrontação, desolação e convalescença. A primeira secção comporta hip hop e as influências reggae/ska que marcaram o seu debute, numa atmosfera falsamente optimista para alguém que assiste ao desmoronamento do seu mundo. "What You Waiting For?" (que, nem a propósito, quase pedia um featuring de Gwen Stefani) e "Your Choice" convidam-nos para um caloroso sound system no coração da Jamaica, ainda que retratem a inevitabilidade do divórcio do seu companheiro, com bastante remorso à mistura. "Trigger Bang", intoxicante construção hip-pop, é a constatação do novo eu da sua intérprete, alguém que está disposto a cortar com os excessos e as amizades tóxicas do passado para se reabilitar. E é bem capaz de ser a melhor canção alguma vez feita por Allen. 

A desolação chega com "Lost My Mind", servida em risonha cama dancehall-pop, mas com a cantora a questionar a sua sanidade e a mergulhar no estado depressivo em que o divórcio a deixou. Ainda antes de se atirar a um trio de magníficas baladas, há um ligeiro desvio de caminho para criticar o abuso de poder da indústria corporativa musical em "Higher", filtrada em suave e relaxada ambiência dancehall como forma de terapia de uma situação possivelmente traumática.



A tocante "Family Man", com o seu toque de piano man à Elton John, recua ao tempo em que a ligação conjugal ainda não havia chegado ao fim e surge como súplica de Lily para que a salvação do relacionamento ainda seja possível - acresce a tristeza de sabermos agora que não foi. A belíssima "Apple" desenha-se no reflexo lunar de "K." dos Cigarettes After Sex e culpa o historial de casamentos falhados dos seus pais pelo infortúnio da sua própria relação. Mas nenhum outro momento nos deixa à beira das lágrimas como "Three", narrado da perspectiva de uma das suas filhas mais novas: um retrato emotivo de como é ter uma estrela pop como mãe, que vê crescer os seus rebentos à distância. Machadada final na tristeza com o sorumbático "Everything to Feel Something", em que Lily recupera memórias angustiantes das suas experiências com o abuso de substâncias.

Remamos vigorosamente rumo à convalescença com a toada reggae bamboleante de "Waste", carta aberta a um ex-amigo dispensável, e com a pop régia de "My One", que coloca a cantora de volta ao mercado das conquistas amorosas, sendo facilmente o tema mais fraco do alinhamento. "Pushing Up Daisies" é a nova oportunidade concedida ao amor que tão cedo não se julgava possível, com Allen a  expôr os seus anseios e desejos ao lado do novo companheiro, mimetizando um pouco a carga emocional de "Delicate" de Swift. O dedo do meio ergue-se aos últimos acordes do disco com "Cake", a sua tomada de posição contra o patriarcado e a opressão da figura feminina na sociedade - sempre adorámos Lily por defender aquilo em que acredita.

Na arte, como na vida, penar e falhar é essencial. Depois da versão mais sonora e desbocada de Sheezus, em No Shame Lily Allen faz de si própria, para ela própria - e o resultado é música da qual se pode orgulhar, capaz de ressoar no coração de quem a escuta. É acima de tudo de verdade e desta Lily que o mundo precisa.


Classificação: 7,7/10 

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