'Future Nostalgia' de Dua Lipa: Clássico Instantâneo


Quando Dua Lipa surgiu a meio da década passada, na mesma vaga de Anne-Marie ou Mabel, nada indicava que pudesse vir a pertencer ao grupo da elite pop do mainstream. As canções eram relativamente decentes (menção especial a "Be the One" ou "Hotter than Hell"), mas muito havia para lapidar no embrulho difuso que nos oferecia.

O seu debute já estava no mercado quando "New Rules", sétimo (!) single do projecto, fez o que nenhum outro havia ainda conseguido e a catapultou para o estrelato global, no Verão de 2017. A maré mudou porque, pela primeira vez, Dua tinha não só um potencial hit em mãos como um conceito bem definido na sua mente - a inquebrável aliança feminina - trazido à vida com o extraordinário vídeo de Henry Scholfield, sem o qual não se conta a história da década passada. Levou-lhes dois anos, mas finalmente Dua e a sua editora tinham percebido qual o caminho a tomar.

E tudo o que se seguiu correu igualmente bem, porque semelhantes abordagens foram adoptadas. "IDGAF", o single menor que lhe sucedeu, funcionou porque a direcção artística do videoclip é de sonho. "One Kiss", estonteante banger deep house/eurodance da forja de Calvin Harris, renovou-lhe o título de maior canção do Verão pelo segundo ano consecutivo; e no igualmente bestial piano house de "Electricity" de Diplo e Mark Ronson, pôs uma peruca loira enquanto dançava ao melhor estilo de Flashdance num armazém abandonado. Todos hits, todos certeiros. 



Enquanto o seu segundo disco ganhava forma, Dua Lipa transformou-se na estrela pop que poucos julgaram ser possível. Melhorou a postura e a presença em palco (bendito professor de expressão corporal), fortemente criticada em ocasiões anteriores; criou uma estética sonora sob a qual construiu as novas canções; trouxe a si um leque de produtores mais restrito e coeso; e adoptou um fantástico novo visual para melhor condizer com o que aí vinha. E os resultados não tardaram a fazer-se sentir.

"Don't Start Now" fez-se anunciar no último trimestre de 2019 para a aclamação (e algum assombro) global. Um brilhante exemplar nu-disco que funciona como a triunfante resolução pós-"New Rules", munido de cordas elegantes, cowbell sedutora e um musculado baixo funk que até deixaria Mark Ronson levemente pasmado. Não poderia existir cartão-de-visita mais avassalador: a trajectória comercial da canção tem sido emocionante, comandando juntamente com "Blinding Lights" de The Weeknd, o revivalismo 80s que atravessa o mainstream

E não foi preciso muito para compreendermos que Miss Lipa nos queria levar por uma odisseia sónica retro-futurista, capaz de encontrar nos ensinamentos da cartilha disco, funk, electropop, synthpop, house ou new wave de eras passadas, uma forma de reflectir o presente de forma entusiasta. O electro-funk espaventoso do tema-título - uma espécie de equivalente pop a "Daffodils" de Ronson e Kevin Parker - abre o disco ao melhor estilo de uma série de espionagem dos anos 70, com a intérprete a destilar confiança e charme british a cada palavra debitada ("I know you ain't used to a female alpha"). "Physical", alta voragem synthpop e pop/rock oitentista, clama pela passagem das palavras à acção através de uma batida techno febril, prestando homenagem à faixa homónima de Olivia Newton-John.



Já conseguimos ver "Cool" a dar o mote a muitos pores do sol por esse Verão fora com a sua toada new wave/synthpop saturada de êxtase romântico e cores quentes. É um futuro single a aguardar luz verde, mas também o é "Levitating", uma deliciosa feel-good song electro-disco sobre embriaguez passional a unir uma qualquer ponta solta entre o catálogo das Spice Girls e dos Daft Punk, construída em torno de um baixo groovy, palmas e coros regados a vocoder. Mas também "Hallucinate" tem uma palavra a dizer, pura adrenalina disco-house propícia a encerrar tanto um desfile na catwalk como um festival sob uma chuva de confettis. Tem uma certa aura de anos 00 que encaixaria em álbuns de Lady Gaga (o "mi-mi-mi-mind" do refrão pisca o olho a "Poker Face") ou Kylie Minogue. Seja qual for o próximo, a campanha promocional continuará em boas mãos.

A combustão lenta de "Pretty Please", numa insinuante passada disco-funk, deixa-nos recuperar algum fôlego. O tema recebe uma das prestações mais sensualonas do registo, com Dua a versar sobre a incapacidade de refrear o seu desejo perante o parceiro. "Love Again" resplandece numa elegante e sóbria atmosfera disco e electro-swing que firma a sua ginga na esperança de que o coração poderá revalidar a sua crença no amor. Já "Break My Heart", embora não sendo a mais óbvia escolha de single - a sua cadência no refrão traz à memória "How Long" de Charlie Puth - é um bombom disco e europop que sampla a melodia de "Need You Tonight" dos australianos INXS e que a vê entrar novamente no jogo do amor, receando arrepender-se pelo caminho. O género de vulnerabilidade que Future Nostalgia nem sempre permite vislumbrar.



Perto do fim, dois objectos tão estranhos quanto compelativos. "Good in Bed", sobre quando a química sexual com o parceiro é a única coisa a manter o relacionamento à tona, vive do mesmo humor e atrevimento dos primeiros álbuns de Lily Allen, revestindo-se de uma batida pop-funk elástica. "Boys Will Be Boys", por seu lado, é bem mais séria do que o seu título deixa antever, versando sobre a condição feminina, masculinidade tóxica e a eterna questão dos padrões duplos, numa composição pop barroca que mais facilmente encontraria lugar num álbum de Marina and the Diamonds. O dancercise termina assim num bailado em pontas e com a mão na consciência. 

Muito claramente, Future Nostalgia é o álbum pop a bater em 2020. Há um crescimento absurdo do homónimo de 2017 para este segundo disco e temos tanto que congratular Dua Lipa, pelo incansável esforço, como a Warner Records por ter sido capaz de compreender a visão da sua artista, investindo nela e apoiando-a no processo. Esperávamos eventualmente que Dua atingisse este patamar, mas não julgámos que seria tão rápido e de forma tão esmagadora - é agora, e de forma merecida, a maior estrela pop feminina da actualidade. Resta-nos assistir ao resto da jornada e deixar que o Teenage Dream dos anos 20 cumpra o seu destino. 



1. Future Nostalgia (9/10)
2. Don't Start Now (10/10)
3. Cool (9/10)
4. Physical (9/10)
5. Levitating (10/10)
6. Pretty Please (10/10)
7. Hallucinate (9/10)
8. Love Again (8/10)
9. Break My Heart (8/10)
10. Good in Bed (8/10)
11. Boys Will Be Boys (8/10)

Classificação: 8,9/10

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