'Chromatica' de Lady Gaga: Rave Intergaláctica



Os rumores do desvanecimento de Lady Gaga foram decididamente exagerados. A aventura country pop e soft rock de Joanne (2016) não foi de todo unânime pela crítica e pelo público, mas a contenção de carácter e a menor proeminência comercial foram essenciais para o que se seguiria. 

Talvez nem nos seus melhores sonhos Gaga tenha imaginado que aceitar o papel de protagonista no remake de A Star is Born (2018) lhe trouxesse tantas coisas boas. A sua parelha mais-que-perfeita com Bradley Cooper no cinema deu-lhe, entre tantos prémios, múltipos Grammys, um Óscar, um BAFTA ou um Globo de Ouro, mas conferiu-lhe sobretudo não só uma importante recentralização da sua figura no mainstream, como o respeito e aclamação de uma considerável falange de detractores ou meros não seguidores, que haviam ficado presos aos tempos do mítico vestido de carne.

No decurso de um ano, Gaga havia voltado ao topo e era de novo o centro do universo, como já não acontecia em quase uma década. Em suma, estava na melhor posição possível para fazer absolutamente o que quisesse com o seu próximo álbum. E não foi até à temporada de prémios de A Star Is Born estar completa (com os dois Grammys adicionais que recebeu em Janeiro último) que Gaga revelou o que tinha estado a confeccionar nos últimos três anos.


Quando "Stupid Love" chegou numa expressão de dance pop triunfal ilustrada por uma fantasia futurista de Mad Max combinada com os Power Rangers do espaço, era nítido que os dias de The Fame (2008) e Born This Way (2011) estavam de volta, e que a Mother Monster se preparava para reclamar o trono da pop ao seu melhor estilo excêntrico e bizarro.

Adiado sete semanas por culpa das preocupações em redor da pandemia, Chromatica aterrou entre nós no final de Maio para a aclamação crítica e comercial global, entregue como uma missiva de amor à sua condição de estrela pop e às suas raízes ligadas à música electrónica: mais do que Artpop (2013) - um nadinha experimental e exaustivo em certos momentos - este é o seu disco mais clássico e normativo desde o inaugural The Fame

"Alice" dá o ponto de partida para este universo cyberpunk, puro exercício dance pop/house reminiscente dos anos 90, que menciona a figura titular do mítico conto de Lewis Carroll para expressar a necessidade de escapismo e a vontade de não sucumbir à pressão ("my name isn't Alice, but I'll keep looking for Wonderland"). Depois do citado cartão-de-visita, surge o sonante "Rain on Me" a cimentar o seu regresso glorioso numa cascata de house e disco noventista com leves floreados de R&B sempre que Ariana Grande exala o seu perfume - uma colaboração não tão espectacular assim (faltava o toque de um produtor mais fiável que BloodPop ou Burns), mas que celebra com fervor a superação de traumas pessoais. 


"Free Woman", jubiloso momento de libertação e reclamação identitária em terrenos de eurodance, contém possivelmente aquele que é o verso-chave de Chromatica ("this is my dancefloor I fought for"). "Fun Tonight" é a faixa mais fraca do registo: uma tépida construção dance pop em que Gaga mantém uma conversa ao espelho com a figura que a personifica, e que soa a uma versão bem mais desinspirada de "The Edge of Glory". No eurodisco robótico de "911" - estatuto de single à vista - a intérprete reconhece ser o seu maior inimigo, enquanto versa sobre a sua saúde mental. E "Plastic Doll", europop cintilante e dramaticamente enunciada - não é mais do que a revisitação do arquétipo da dita estrela pop que tem vindo a combater ao longo do seu percurso, com expressão máxima em "Do What U Want".

Num disco sem nenhum estrondo declarado, talvez "Sour Candy" seja quem mais se aproxime da marca, um bombom deep house bilíngue e generoso o suficiente para ceder parte do seu tempo de antena às Blackpink, com Gaga relegada para mestre de cerimónias num quase spoken word mecânico. A segunda parte do álbum melhora consideravelmente graças a esse tema e esforços como "Enigma", júbilo europop com amálgama de sopros, cordas elegantes e balanço funk, que reitera a importância do mistério num relacionamento; e com a extravagância nu-disco de "Replay" que versa acerca da convivência cada vez mais pacífica com os seus traumas do passado. 


Finalmente a sua amizade com Elton John resultou numa colaboração oficial em disco: "Sine From Above" discorre sobre o poder espiritual e regenerador da música, mas sonicamente resulta numa mescla disconexa e turbulenta de várias artérias electrónicas. "1000 Doves" é o mais próximo de uma balada que Chromatica nos oferece, uma infusão de disco/trance etérea em que Gaga professa o seu amor pelos fãs, ao mesmo tempo que suplica que não nos esqueçamos da sua humanidade na condição de estrela pop. E "Babylon" é um espaventoso closer, formidável na sua passada house/voguing que não esconde a inspiração directa em La Ciccone ("money don't talk, rip that song") e alude à força destruidora dos boatos, aproveitando a potencialidade fonética da antiga civilização mesopotâmica com o termo "babble on". 

Aí a temos, doze anos e seis álbuns depois a desafiar o envelhecimento precoce das estrelas pop, novamente no topo da montanha. Chromatica é, pois, bem-sucedido no sentido de a devolver às tabelas nos meandros da dance pop e electropop que a moldaram, e apesar de ser um dos títulos mais consistentes e satisfatórios da sua discografia, não parece fazer muito pelo estado da pop em 2020. É um throwback, uma revisitação agradável de um lugar e de uma era em que já foi feliz e nos fez igualmente felizes. Falta-lhe uma boa dose de arrojo, inovação e alguma loucura - e Gaga estava na posição certa para correr esse risco. Talvez esteja a guardá-lo para a próxima oportunidade, até porque com ela as surpresas e o enigma não têm fim. 


1. Chromatica I (-/-)
2. Alice (7/10)
3. Stupid Love (8/10)
4. Rain on Me (7/10)
5. Free Woman (8/10)
6. Fun Tonight (6/10)
7. Chromatica II (-/-)
8. 911 (8/10)
9. Plastic Doll (8/10)
10. Sour Candy (8/10)
11. Enigma (8/10)
12. Replay (8/10)
13. Chromatica III (-/-)
14. Sine from Above (7/10)
15. 1000 Doves (8/10)
16. Babylon (8/10)

Classificação: 7,6/10

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