Sereia Louca - O Feminino Singular de Capicua


Há já bastante tempo, demasiado até, que não falo aqui no blog de um disco nacional. Eu até oiço uns quantos - isto agora com o Spotify é a loucura - mas nem sempre me sinto habilitado/confiante para falar deles. Não é que com o novo disco de Capicua a história seja diferente, mas de alguma forma sinto-me tentado a escrever sobre ele. Mal ou bem, é a minha leitura. 

Reza a lenda que este Sereia Louca nasce de um sonho que Ana Matos, verdadeiro nome da rapper portuense, teve certa noite quando o seu subconsciente fê-la crer que tinha aberto uma sapataria na Rua da Cedofeita - há que adorar o nome - perto do local onde Capicua residia e cujo nome era precisamente Sereia Louca, o que tanto a deixou intrigada, pois sereia que é sereia não precisa de sapatos. Daí que só possa ser louca.

Mas esta não foi a única leitura que Capicua fez da mensagem onírica. Para lá do óbvio, chegou à conclusão que ainda poderia dividir o termo numa outra significância: serei a louca. E assim estava dado o mote para esta nova aventura discográfica em que o mar, a figura feminina e a passagem do tempo são temas recorrentes. Tudo com uma boa dose de genialidade e loucura, claro.

O disco inicia-se com "Lenga" (de lenga-lenga?), canção com traços orquestrais que não é mais do que um prefácio assinado pela própria rapper, como se quisesse dar a entender ao ouvinte as intenções e motivações que estão por detrás deste disco, ao mesmo tempo que cita, através de um sample, o poema "Mar" de Sophia de Mello Breyner Andresen, se não estou em erro. Logo à espreita está o tema título do álbum que é também o seu angustiante cartão de visita: uma louca que apenas o é porque ninguém senão ela tem coragem para "gritar, chorar, bramir, esbracejar" e de remar contra a maré, mas começa-lhe a faltar o "ar" para continuar a "cantar" e nada lhe restará senão o "silêncio" comum a tantos que perderam a fé/força. Ao 3º tema surge a primeira de 3 convidadas: a grande Gisela João que aqui impregna com a sua voz grave um tema envolto num profundo pesar em que Capicua escreve uma carta de despedida a um familiar ou pessoa muito próxima que abandonou este mundo cedo demais. É o emotivo e confessional "Soldadinho", para mim um dos momentos mais prodigiosos do álbum.



Depois de dois momentos com uma carga emocional tão pesada, o ar alivia com  "Mão Pesada", mais um testemunho de duas mulheres invictas - a Capicua junta-se M7 - do que propriamente uma promessa de tareia a torto e a direito, ainda que possam existir umas pancadinhas de amor à moda do norte. Curiosamente, acho que M7 faz melhor justiça a isto do que Capicua, mais segura de si quando canta crispadamente do que com falinhas mansas. "Líquida", como o título indica, vê a rapper encarnar a pele da água, enunciando as suas inúmeras utilidades e alertando para o facto de ser um bem primário, escasso e precioso. Tem o seu quê de contestário e pedagógico - fosse isto utilizado como método de ensino nas escolas portuguesas e a geração futura estaria muito mais alerta para o seu uso devido.

Em "Síndroma do Peter Pan" Capicua reflecte sobre a passagem do tempo, esse malvado que avança veloz e indomável sem pedir explicações a ninguém. Há espaço para divagações pessoais ("há que enfrentar a morte e não temer a mudança") mas também para comentários sociais ("porque é que esta sociedade faz sentir que na realidade caminhar para a velhice é uma contagem regressiva?"). A nível melódico associo-o bastante aos Orelha Negra e, pessoalmente, também me consigo identificar bastante com as palavras que ela canta. Afinal de contas, não temos todos um Peter Pan dentro de nós? De seguida somos convidados a conhecer "A Mulher do Cacilheiro", um relato pungente do dia-a-dia das mulheres de "pele negra", muitas vezes desprezadas pela sociedade, que atravessam a outra margem do rio em busca de vários sustentos que mal chegam para governar uma vida repleta de amarguras e adversidades mil. Dá que pensar...

"Alfazema", outro dos grandes momentos do disco, é um valente manifesto feminista em que Capicua versa acerca do papel da mulher na sociedade actual, ou aquilo que esta espera dela, uma figura oprimida e estereotipada. A certa altura a rapper sai-se com um gigantesco "não vou cumprir com a p*** da expectativa", agressivo no papel mas necessário num tema tão inflamado quanto este. É o canto louco da sereia. "Vayorken" é a página retirada do álbum de memórias de Capicua, nomeadamente aquelas que a transportam para os felizes e inocentes tempos de infância. É também uma homenagem ao berço do hip hop, Nova Iorque, aqui designado pelo anagrama "Vayorken", termo que atabalhoadamente Capicua utilizava em criança para descrever a cidade que nunca dorme. Tem uma batida exuberante, é divertida à brava e ainda incorpora um sample de "Canção de Embalar" de Zeca Afonso. Absolutamente brilhante. O disco encerra com o belíssimo "Lupa", em que a voz de Aline Frazão (não muito distante de Sara Tavares) resplandece como o sol que espreita por entre as folhas das árvores, enquanto Capicua reflecte sobre o que ficou lá para trás, fixando o pensamento num recomeço. O ponto final perfeito.



Embalado pela magia do álbum, escuto ainda a segunda parte do disco - Cauda - composta por fabulosas versões acústicas de antigos temas seus. É uma Capicua mais exposta e também mais melíflua, acompanhada à guitarra e por vezes na voz por Mistah Isaac. Tão tão bom.

De facto o hip hop não é dos meus géneros musicais predilectos, seja ele cantado em inglês ou português. Mas ultimamente tenho-me cultivado mais nesse território e descobri que afinal não era assim tão inacessível ou detestável quanto pensava - é tudo uma questão de sensibilidade e bom-senso. Capicua tem isso e tudo mais: as batidas certeiras, maleabilidade na voz, rimas habilidosas e uma visão ímpar, crítica e repleta de significado de tudo aquilo que a rodeia. Sereia Louca é o canto, o grito, a lágrima, o arrepio, a gargalhada e o triunfo de uma menina-mulher que se encaminha para ser um dos maiores vultos da música portuguesa da sua geração. Que a loucura a acompanhe por muitos e bons anos.

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