Pensar a Música #1: O fim dos ciclos


Até há alguns anos atrás a indústria da música obedecia a ciclos. Compor, gravar, editar, promover um álbum com quatro/cinco singles, andar em digressão e voltar ao ponto de partida, ganhando inspiração para começar tudo outra vez.

Esse modelo pertence ao passado. Já poucos artistas e executivos se regem por ele - e quem o segue ou prefere não jogar o jogo, ou tem tendência a dar-se mal. Atribuemos a culpa ao streaming e às redes sociais, que impuseram não só um novo modelo de consumo como de práticas negociais, em que termos como "excesso" e "omnipresença" não são tidos em conta. E em que qualquer um é livre para escrever as suas próprias regras, com o que isso tem de bom e de mau.

Tomemos o caso de Ariana Grande. No início deste ano tornou-se na primeira estrela pop de sempre a sobrepor eras discográficas, editando dois álbuns crítica e comercialmente aclamados com menos de seis meses de diferença: Sweetener encerrou a sua jornada promocional ao fim de meio ano e três singles, e logo deu lugar a Thank U, Next, que fez a sua caminhada em metade do tempo. Desde então já a vimos lançar "Monopoly" e "Boyfriend", singles avulso colaborativos, e o ano não terminará sem a sua anunciada curadoria da banda-sonora do remake de Os Anjos de Charlie. Ou seja, em menos de dois anos Ariana terá editado dois álbuns, nove/dez singles e feito uma digressão mundial de 102 datas. Pelo meio, chegou ao topo do universo - mas a que custo?

A livre disseminação do streaming veio potenciar a quantidade de música a que temos acesso, tornando mais atraente para artistas/executivos a ideia de que consumir em larga escala é o único caminho. Muito poucos comprarão o dito produto físico do trabalho do artista, então porque razão não lançar singles avulso sempre que lhes apetecer? Artistas como OneRepublic, Katy Perry, Calvin Harris ou Zedd parecem ter desistido do formato álbum, enquanto debutantes como Lauv ou Kim Petras construíram as suas primeiras eras gota-a-gota, dispensando anexar as canções num tradicional disco ou EP de estreia.

Os casos de omnipresença, contudo, são mais gritantes noutros pólos. Khalid, príncipe da nova dinastia do R&B, não sabe o que é abrandar desde que "Location" o atirou para o mainstream, no ínicio de 2017, tendo acumulado mais de vinte singles desde então, espalhados por dois álbuns em nome próprio e múltiplas parcerias. Halsey não edita um álbum há dois anos, mas 2018 foi o seu melhor ano de sempre, graças à trajectória comercial de "Eastside" e "Without Me", espécie de corolário de um percurso que ainda não abrandou desde 2015. Post Malone idem, que não sabe o que é parar desde que "White Iverson" o arrancou do anonimato, também há quatro anos. Cardi B, em permanente actividade há dois anos, começa a sentir os efeitos da sobrexposição artística e vê o seu trono ameaçado por novatas. E nem falemos dos casos crónicos de Drake e Nicki Minaj. O caminho para a glória é árduo, mas falamos de alguém que já a conquistou - o que é que estão a tentar provar, exactamente?

Por outro lado, as contas de instagram, twitter e facebook dos artistas pululam de actividade: tudo é desculpa para ser noticiado e antecipado com pompa e circunstância, seja uma simples remistura de que ninguém se lembrará no dia a seguir, ou uma inútil adição ao merchandising que poucos se dignarão a comprar. Estamos permanentemente ligados aos artistas, mais do que as linhas do coração permitem. Sabemos o que pensam, a forma como agem, o estilo de vida que levam e percorremos os bastidores das criações e da alma, mesmo quando a música sossega por momentos. 

Parar é preciso. Respirar. Absorver. Inspirar. Para criar de novo e deixar saudades. Há que substituir a omnipresença pela presença que importa e faz diferença. A quantidade absurda pela qualidade de excepção. A nota de rodapé corriqueira pelo título marcante e que perdura. Que cada um pratique e viva consoante as suas regras, sim, mas que não deturpe o seu bem maior, e que no fim de contas é o essencial: a música.

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