Beck: Ainda 'weirdo', não mais um perdedor


Duas décadas e uns tustos passados sobre "Loser", Beck Hansen parece ter furado de vez o mainstream sem abdicar da sua humm... singularidade.  No ano em que se aguarda o nascimento do irmão mais novo de Morning Phase, traço o perfil de um vencedor nos caminhos da dita música alternativa. E que até já ganha Grammys como gente grande - 'perdedor' quem? 

Em Fevereiro último o nome de Beck conheceu índices de popularidade nunca antes vividos. O motivo? A conquista do Grammy de Álbum do Ano, que contra todas as expectativas não foi parar às mãos da favorita Beyoncé, mas às do autor de Morning Phase (2014). O mundo indie rejubilou, o da pop fez esgares de desagrado e incompreensão, enquanto Kanye West fez jus à sua fama de vilão, protestando que o músico deveria "respeitar a arte e ter entregue o prémio a Beyoncé".  

Quatro meses volvidos e o controverso rapper já veio a público retrair-se, afirmando que foi "impreciso com o conceito de um senhor que toca 14 instrumentos não respeitar a arte", sem abandonar, no entanto, o favoritismo pela obra de Mrs. Carter. Mas e quanto aos restantes biliões de almas que não tinham sequer contactado com o obra do autor de "Devils Haircut"? Terá este acontecimento reavivado a carreira de uma das maiores figuras da nação alternativa dos anos 90? 

Apesar de ter suscitado um interesse súbito mas passageiro em Morning Phase (lançado 12 meses antes da distinção pela Academia) poderá ter efeitos mais práticos em lançamentos futuros do artista - pormenores mais adiante - e instigado a descoberta do catálogo de Beck, com mais de uma dezena de títulos compostos e editados ao longo de duas décadas. Sempre de costas voltadas para os holofotes, a desafiar concepções e a fazer-se valer da imprevisibilidade. 

Como no ano em que lança "Loser" - acidente entre o blues, a folk e o hip hop - sem qualquer expectativa comercial, e este se torna num dos maiores êxitos da Geração X. Corria o ano de 1994 e é essa mesma canção a culpada pela edição de Mellow Gold pela gigante Geffen Records, a marcar a viragem no percurso de um autor que até então havia editado os dois primeiros discos de forma independente. Em entrevista à Pitchfork, em 2011, o músico recorda como assinar por uma major foi um pau de dois gumes: "Não queria estar numa grande editora. Queria que toda a atenção e o ruído desaparecessem porque pretendia ser um pouco mais substancial. Vejo a "Loser" como um golpe de sorte que fiz por brincadeira na casa de um amigo em 1991. Não tenho sequer uma cópia da canção. Lembro-me dela como sendo uma piada, mas algumas pessoas ouviram e gostaram". 500 cópias da canção seriam impressas pela independente Bong Load Records, que não conseguiu custear a edição de outras tantas à medida que o tema se tornava mais e mais popular. Alimentá-lo, bem como permitir a edição de Mellow Gold, só via uma editora que aliasse o interesse ao capital - "à época havia um grupo realmente bom de pessoas na Geffen que nos anos 80 tinham estado em selos indie como a SST e a Blast First, ou que tinham trabalhado com tipos como os Sonic Youth. Além disso, as editoras indie não queriam nada comigo porque a "Loser" já se tinha transformado num enorme hit. Havia um grande estigma em relação a isso. E a Geffen percebia o mundo indie, mas estava a editar grandes discos, a vender milhões de cópias e a colocar vídeos na MTV em simultâneo. Foram tempos estranhos". 



Depois veio Odelay (1996) e o génio irrequieto de Beck não se acomodou perante o conforto da vida numa major. Seria, aliás, altamente contestado pela sua editora quando tentava lançar o disco de "Where It's At" ou "Sissyneck", como contava no ano passado à Billboard: "Tive várias pessoas do meio musical a ligarem para me dizer «não lances este disco, será o suicídio da tua carreira». Gastei 200 mil dólares a fazer este álbum, mais dinheiro do que alguém na minha família alguma vez dispôs. Isso foi uma enorme pressão. Ao compô-lo pensei que ao menos tentaria fazer algo interessante para que quando alguém daqui a 20 anos o encontrasse no lixo, dissesse algo do género «Olá, isto é um tanto estranho». Não foram precisas duas décadas para Odelay ser reconhecido e aclamado pela sua bizarria: venderia 2 milhões de cópias só nos Estados Unidos e seria nomeado para os Grammys no ano seguinte na categoria de Álbum do Ano. Ainda hoje permanece como o título da sua obra mais vendido e (quiçá) influente. 

Seguir-se-ia em 1998 o mais discreto Mutations, com incursões pela bossa nova e tropicalismo, e já no final do milénio chegaria  Midnite Vultures numa mal-amada encarnação funk, a resposta de Beck ao "nu-metal e teen pop em voga da época". Melhores ventos sopraram com a edição de Sea Change (2002), inspirado pelo fim do relacionamento com a namorada de longa data e aclamado pelo seu tom folk rock melancólico bem como pelos arranjos de Nigel Godrich, esteta essencial na concepção de grande parte dos discos de Radiohead. Em Guero (2005), o regresso aos Dust Brothers que operaram Odelay, com direito a versão mais vívida e espontânea em The Information (2006). A fechar um ciclo surge Modern Guilt (2008), com Danger Mouse aos comandos de um álbum conciso e dado a devaneios psicadélicos. Os anos seguintes são de notório abrandamento, com Beck a dar largas à sua visão de produtor, colaborando em trabalhos de Charlotte GainsbourgThurston Moore, Seu Jorge ou Stephen Malkmus, mas também a recuperar de uma grave lesão na coluna que o impediu de tocar guitarra durante longos períodos de tempo. "Nem sequer pensava em música. Estava em tanta agonia que, honestamente, era o bastante para passar os dias. Precisava de guardar a energia que me restava para os meus filhos. E quando olhava para a música, quando queria criar música, era muito frustrante porque era incapaz de fazer certas coisas. Foi um período muito difícil. Ver os meus colegas a avançar com as suas carreiras e a deitar cá para fora discos brilhantes... queria mesmo fazer parte disso", confessava à Clash



E assim se passaram seis anos. Até que em Fevereiro de 2014 Beck retornava com o seu melhor disco em anos, tido por muitos como uma sequela de Sea ChangeMorada de canções como "Wave", "Blue Moon" ou "Heart Is a Drum". Processo de convalescença e regeneração de um homem atormentado pelos seus demónios e dúvidas existenciais. Nomeado para 5 Grammys e vencedor de três, entre eles o de Álbum do Ano. Morning Phase, esse mesmo, que muito em breve dará lugar a um sucessor, há muito planeado, que pretende ser o "completo oposto". Segundo afirmações recentes do músico, o disco "começou por ser uma coisa de garage rock pesado e tornou-se mais próximo do registo de dança - uma espécie de híbrido". Declarações atestadas com o recém-lançado "Dreams", single "desenhado para funcionar bem ao vivo" numa altura em que o cantor prepara o regresso à estrada. 

Agora que despertou para uma nova consciência, Beck tem ainda mais motivos para se querer superar e reinventar: "para mim é como se fizesse álbuns para todo o sempre e ainda achasse que não são bem aquilo que quero que sejam. Há sempre algo inalcançável que tentarás atingir. E ficas lixado por não conseguires chegar lá, mas é essa a beleza disto. Dedico-lhe todo o meu tempo e ainda sinto que estou a tentar compreendê-lo. Há mais para fazer. Quando estou a tocar ao vivo é que realmente o sinto - como se houvessem canções que faltassem. Como se fosse um quadro incompleto". E é nessa moldura que todos continuaremos a caber - weirdos, perdedores, vencedores ou simples errantes da vida. Pelo menos enquanto encontrarmos Beck pelo caminho. 



Este foi o meu último trabalho enquanto aluno de Jornalismo e Crítica Musical, que consistia em traçar um perfil de um artista. Já o tinha feito uma vez há uns meses, mas da Ana Moura para o Beck a tarefa não se tornou mais fácil. É incrivelmente difícil e exigente, ainda para mais quando o artista em questão não nos é muito familiar. Ouvi o Odelay, Midnite Vultures, Sea Change, Modern Guilt e escutei novamente Morning Phase para levar a cabo o trabalho. E o certo é que me abriu o apetite para elaborar uma retrospectiva do senhor. We'll see, we'll see...

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