REVIEW: Miley Cyrus & Her Dead Petz


Entre substâncias ilícitas, confissões íntimas, tributos póstumos a animais e uma boa dose de insanidade, Miley Cyrus assina um dos álbuns mais absurdos alguma vez lançados por uma estrela pop e faz das melhores e mais interessantes canções do seu percurso. É ouvir para crer.

Muito antes de Miley puxar a carta do oh-tão-pura-que-era-e-tão-desavergonhada-que-me-tornei, já Britney Spears e Christina Aguilera tinham ladrilhado a rua das almas perdidas no coração da Disney. Não foi nem será à última das estrelas do canal a percorrê-la, mas tem sido certamente a mais espalhafatosa e genuinamente feliz das suas ocupantes.

Acreditámos que seria só uma fase natural de rebelião quando a vimos incitar ao deboche insano em "We Can't Stop" ou a conferir propriedades sexuais a bolas de demolição, mas passaram dois anos e a má conduta da ex-Hannah Montana nem por isso se ameniza. Aliás, Miley parece cada vez mais segura, confiante e natural na sua loucura. Próxima do seu verdadeiro "eu".

Agora que se começa a perceber que a mudança de pele nada tem de forçada, nem por isso o anterior Bangerz merece maiores louvores. É um disco de transição com demasiadas más canções, cheio de atitude mas tão vazio no conteúdo. Um grito de afirmação feito no lugar errado, porque a pop já não é a sua morada ou, sequer, um espaço onde se possa afirmar.

É precisamente isso que este novo Miley Cyrus & Her Dead Petz vem instaurar. Lançado de surpresa no final da sua extravagante actuação de encerramento dos MTV Video Music Awards, disponibilizado para streaming gratuito com o selo da sua editora independente Smiley Miley e assente largamente numa parceria criativa com os rockers psicadélicos The Flaming Lips e produções adicionais de Mike Will Made It e Oren Yoel, os únicos arquitectos sonoros que transitam do disco anterior, e com uma impraticável duração de 92 minutos - agora sim, faz sentido falarmos de uma "female rebel".



"Dooo It!" é o cartão de visita mais grosseiro possível do alinhamento, uma orgia electro/trap entre Peaches e uma M.I.A. às mãos de Diplo, com assumida devoção aos prazeres da erva e ao culto da paz entre o Homem. Partir para a audição do disco na esperança de encontrar intermináveis variações do single acaba por se revelar o seu maior trunfo, pois é essa falta de expectativas para com Miley que permite que a descoberta dos restantes 22 temas seja tão surpreendente. E nem é preciso esperar muito: logo ao segundo tema encontramos uma delicada "Karen Don't Be Sad" à imagem esperançosa de "Hey Jude" dos Beatles. A justificar o título do disco temos "The Floyd Song (Sunrise)", sentida elegia psicadélica ao seu cão e a mais ingénua e juvenil "Pablow the Blowfish", em homenagem lacrimejante a um antigo residente do aquário lá de casa.



"Space Boots" é a versão menos hedonista e mais chill out de "We Can't Stop" repleta de referências espaciais; em "BB Talk" adopta um interessante registo de desabafo emocional em spoken word seguido de um refrão melódico que traz à memória Gwen Stefani nos No Doubt; "Bang Me Box" recria a atmosfera lânguida de "Wicked Game" com mais baixo e perversão à mistura; a esquizóide "Milky Milky Milk" aproxima-se do R&B digital de FKA twigs com assinatura de Arca e conta com um dos versos mais estapafúrdios do álbum ("your lips get me so wet/ while I'm singing all the verses from the Tibetan Book of Dead"). Está visto que não é uma ode à amamentação. As coisas continuam agradavelmente esquisitas na confessional "Cyrus Skies", com Miley a usar a sua voz de formas que desconhecia, ora em graves à Lana Del Rey, ora em explosões de rock de arena. Um quinteto que facilmente forma a melhor secção do disco. 



A primeira das colaborações acontece em "Slab of Butter (Scorpion)" com a voz feminina dos Phantogram em (des)uníssono à sua num tema que opõe Mike Will Made It e os Flaming Lips na mesa de mistura, cada um a tentar trazer as suas influências sem que haja grande consenso ou bom aproveitamento da convidada. Prova de que há um duelo entre produtores é que "I Forgive Yiew" contém a mesma batida do tema anterior, como que a fazer prevalecer o argumento do beatmaker de Atlanta. "I Get So Scared" pertence à classe dos dispensáveis, redundante por soar demasiado normativo, ainda que revele bastante da sua autora. "Lighter", espirituoso e celestial na linha de "Forever Young", fornecia o pretexto ideal para concluir o disco, mas Miley quer continuar a divertir-se.



É então ao 17º tema que a experiência psicotrópica começa a tornar-se um bocadinho maçadora. O suminho adulterado de "Tangerine" (com um ultra-smooth Big Sean em topo de forma) ainda faz coisas boas pelo espírito, mas a insondável leveza e morosidade de "Tiger Dreams" (com um longínquo Ariel Pink) ameaça deixar-nos presos entre mundos alternativos. "Evil Is But a Shadow" também merecia dispensa, mas tem o seu quê de vénia a Jean Michel Jarre ou aos percursores Air. Nada indicava que ainda estaria à espreita uma admirável canção pop na figura de "1 Sun", com preocupações ambientais, shout out a Grace Jones e um registo vocal próximo da Lady Gaga de Born this Way. A canção final, "Twinkle Song" (que não se faz anunciar sem um relaxante interlúdio tibetano) é um misto de Annie Lennox e - novamente - Lady Gaga numa visceral interpretação ao piano. 



Qualquer ilação menos boa que daqui se retire será sempre derivada do preconceito. Miley Cyrus & Her Dead Petz não é um grande álbum, mas sim um álbum grande daquela a quem acusaram (presente!) de vilipendiar esta forma de arte a que chamamos música. Ei-la aqui e agora a fazer um projecto financiado por si mesma, com dedicação e coração a rodos, sem qualquer proveito comercial em vista e a embarcar numa odisseia musical absurdamente fascinante. O twerk era só a ponta do icebergue - há mais para ver, ouvir e conhecer em Miley Cyrus e a audição deste disco é absolutamente essencial para melhor se compreender a peça. Tomara que mandasse a carreira pop às urtigas e se regesse pelas regras que bem lhe apetecer criar, mas acho que é um risco que ainda não está disposta (ou possibilitada, sequer) a correr. Por agora basta que tenha aberto um precedente na classe para mais aventuras destas e que descomprometidamente se tenha comprometido com um futuro muito mais entusiasmante. 

Classificação: 7,3/10

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