REVIEW: Rae Morris- Someone Out There


Documento de regeneração e libertação artística ou como Rae Morris fez um dos primeiros grandes álbuns pop do ano. 

Aparentemente nada mudou no que à percepção pública de Rae Morris diz respeito: continua a ser um dos segredos mais bem guardados da música britânica, tanto que quase ninguém se apercebeu que Unguarded (2015) foi uma das melhores estreias em disco desse ano e que estavam lá todos os indicadores para um futuro auspicioso que se começa já a cumprir com este Someone Out There.

Na verdade, a total ausência de expectativas e a invisibilidade mediática jogam a seu favor e possibilitam o primeiro grande triunfo do novo disco, que ao invés do primeiro foi mantido num quase regime de seclusão, escrito e produzido na sua maioria por Rae, Fryars e a dupla My Riot. Íntimo e congruente. 

Há todo um sentimento de superação e metamorfose propagado ao longo do álbum que começa logo em "Push Me to My Limit", uma magnífica composição de sopros régios e cordas delicadas que desenham o mais belo nascer do sol num redor ainda mergulhado pela calma da noite. A constituição orquestral acompanhada de uma leve programação electrónica recapturam a ambiência da Björk de Homogenic (1997), mas é a interpretação de Rae - ora cristalina, ora granítica - e sobretudo a adversidade por ela cantada, que tornam o tema tão arrebatador. E sabemos à partida que nada voltará a ser como dantes. 



Dúvidas houvesse e aí está "Reborn" para as dissipar: um quase banger europop envolto em drum pads e teclados pulsantes, repleto de vida, coração e sede de mudança ("find another name for me, finally transform me"). Funciona como a "Do You Even Know?" do disco anterior, mas em vez de projectar força das experiências negativas acumuladas, reclama toda uma nova identidade destemida e livre de fantasmas do passado - é facilmente o momento mais soberbo do álbum.

Regenerada e plena de vida, Rae parte em "Atletico (The Only One)" numa busca pelo mundo que vê agora revestido de novas e entusiasmantes cores. A investida exploratória resulta num banquete para os sentidos - luminescências sonoras, harmonias esquisitas e acrobacias vocais capazes de rivalizar com as de Kate Bush em "Wuthering Heights", num dos objectos pop mais extravagantes em tempos recentes. "Do It" não é mais do que a sua intérprete a atirar-se completamente para fora de pé e a triunfar no desconhecido: uma semi-eufórica e inteiramente hercúlea composição pop de tempero dancehall acerca de contornar o óbvio, arriscar e ver no que dá. A sorte protege os audazes, de facto.



Em "Wait for the Rain", balada pop electrónica que versa sobre a propriedade purificadora das bátegas, Rae canaliza inspiração alheia - porque a sua nova versão jamais chegaria ao ponto de esperar que o céu apaziguasse a sua dor. De novo na sua pele, "Lower the Tone" debruça-se sobre a intimidade entre dois seres: como as barreiras da estranheza e desconforto tombam para dar lugar a algo mágico. Essa ânsia é perpetuada por uma esparsa cama electrónica, leves golfadas de vocoder e um crescendo tribal que se adensa até ao minuto final - é o seu momento Ray of Light, místico e sedutor.

"Physical Form" é o tipo de canção que só nasce de quem facilmente passa despercebido no meio da multidão e se sente, por vezes, invisível e sem voz. Passível de acontecer a alguém tão low-profile quanto Rae. Soa a uma versão mais apurada de "Under the Shadows", recuperando algumas das heranças de Kate Bush. "Do It" tem uma irmã gémea mais excêntrica e frenética em "Dip My Toe", - que não destoaria totalmente do catálogo de Grimes - acerca de estarmos receptivos a novas experiências, relacionamentos ou perspectivas. Uma vez mais, o carácter expedito e impulsionador a marcar pontos. Mas é "Rose Garden" que arrebata o título de canção mais arrojada e multidimensional: ecos de Bush, Björk e Madonna numa fascinante escultura viva de electropop, techno e atmosfera orquestral que se debate com a frustração de não se ser capaz de ajudar outro alguém.



O tema-título é o regresso às canções tecidas ao piano que marcaram os seus primeiros trabalhos: uma singela e delicada composição algo jazzística da lavra de Katie Melua sobre os seis graus de separação ou como uma interacção e partilha humana podem salvar vidas. Rae volta a assumir a postura de contadora de histórias (num estilo que muito deve a Sir Elton John) na esplendorosa balada semi-electrónica que encerra o disco, "Dancing with Character", sobre um garboso dançarino da Blackpool natal que conserva nos movimentos da dança muitas das memórias da falecida esposa, com quem dançava regularmente no clube local. Tremendamente bonito.

Voltamos à casa de partida: é o low-profile de Rae Morris que permite que Someone Out There seja um triunfo. Porque é dele que ela parte para sair da casca e procurar novos horizontes artísticos, e dele que se serve para arrebatar quem a tomava por uma frágil e insípida cantautora ao piano. Não nos esqueçamos da sua melhor proeza: na sua jornada exploratória, o álbum nunca perde o coração. É confessional. Vibrante. Curioso. Assertivo. Fulminante. E pelo meio encontra o compromisso entre o experimentalismo e a eficácia pop. Que feito magnífico para se atingir logo ao segundo álbum - parabéns, Rae.



Classificação: 8,6/10

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