REVIEW: Beyoncé- BEYONCÉ
Ao longo de toda a semana mostrei-vos o processo criativo do 5º álbum de Beyoncé e agora é chegada a altura de me pronunciar acerca dele. Sem mais demoras, eis a minha opinião:
1) Pretty Hurts- Espelha a premissa do álbum: a compreensão de que a perfeição é inatingível e que devemos aceitar as nossas imperfeições. Liricamente refere-se a toda uma nação ("perfection is a disease of a nation") e visualmente é uma alegoria ao vazio e tirania reinantes nas vidas daqueles que buscam o corpo perfeito ("it's the soul that needs the surgery"). Um pouco mais a fundo, creio que também há aqui uma boa dose de mea culpa: pelos anos em que Beyoncé colocou a carreira em primeiro plano, apenas para perceber que não há troféu, elogio ou remuneração extrínseca alguma que supere o abraço do seu marido ou o sorriso da filha - e eis que surge a libertação necessária para fazer este disco. Imperfeitamente perfeito. (9/10)
2) Haunted- E ao 2º tema a revolução. Dividido em duas partes - "Ghost" ocupa os 3 primeiros minutos e "Haunted" os 3 restantes - é a canção mais complexa e obscura alguma vez lançada por Beyoncé. "Ghost" faz-me lembrar Kanye West no último Yeezus, com um rap invulgar e irreconhecível de Miss Knowles que parece sair do seu próprio corpo para se auto-analisar, descobrir uma série de dilemas morais e mostrar-se assombrada pelo karma. A transição para "Haunted" ocorre como de pesadelo-para-pesadelo, com o vídeo a adquirir contornos dignos de um American Horror Story e a canção a entrar por territórios lânguidos, pulsantes, com percussão tribal e sintetizadores maléficos. (10/10)
3) Drunk in Love- Marca o reencontro do casal no que a parcerias discográficas diz respeito para aquilo que pode ser entendido como um "Crazy in Love" after-party, com a diferença de que os prazeres da carne estão mais consumados do que há 10 anos atrás, motivo que explica a razão pela qual o dueto não é mais do que uma viagem pelos recônditos secretos do vale dos lençóis e uma ode indiscreta à química sexual do par. Ainda que sonicamente seja mais interessante que a nível lírico - batida trap e teclados arábicos de Timbaland compõem o festim carnal - não deixa de ser impressionante a bravura com que Beyoncé expõe a sua sexualidade. (9/10)
4) Blow- Foi o tal que, de início, mais me captou a atenção - tanto a nível auditivo como visual. É tão ou mais desavergonhada que "Drunk in Love", mas muito muito mais divertida e irresistível, numa deliciosa e libidinosa toada disco/funk que me faz lembrar um Prince meets Destiny's Child. É uma soberba criação de Pharrell, Justin Timberlake, Timbaland e da própria Honey B, que conta diversas insinuações ("keep me humming, keep me moaning") e um fabuloso clímax ("turn that cherry out") que a torna simplesmente perfeita. (10/10)
5) No Angel- Novamente a compreensão de que a perfeição é uma utopia. Só que desta vez é a própria Beyoncé que se apercebe que nem ela nem o sujeito a que a canção se refere são imaculados, daí serem perfeitos um para o outro. É uma Beyoncé em modo ultra-ofegante e sensualona que aqui se ouve, envolta por uma batida minimal e uns quantos sintetizadores dengosos. Gosto, mas tanto a canção como o respectivo vídeo são dos que menos aprecio no disco. (8/10)
6) Partition- Esqueçam "Drunk in Love" ou "Blow". Esta sim, é a canção mais sexual alguma vez lançada por Beyoncé. Os dois primeiros minutos são dominados pelo interlúdio denominado "Yoncé" - uma espécie de gangsta rap que evoca uma versão bem mais hardcore de Sasha Fierce - seguindo-se o electro-R&B libidonoso presente em "Partition", uma fantasia erótica com laivos de alta costura em plena limousine, com Beyoncé a afirmar "take all of me/ I just wanna be the girl you like". O vídeo é igualmente lascivo, com a acção a decorrer no cabaret parisiense Crazy Horse. Para o fim está reservado uma curiosíssima secção spoken-word em francês, acentuando a mensagem feminista pós-moderna que o disco propaga. É a pura e heróica emancipação de Beyoncé. (9/10)
7) Jealous- Esta é a única canção que escapa à minha compreensão. E nem o vídeo dissipa as minhas dúvidas. "I'm just jealous/ I'm just human/ don't judge me", canta Beyoncé sob uma batida neo soul futurística - mas porquê e para quem? Estará ela a cantar na terceira pessoa? Num álbum tão honesto e transparente, sinto que esta é a peça do puzzle que não encaixa no todo. Ainda que sonicamente seja interessante q.b., faz-me lembrar demasiado a era de I Am... Sasha Fierce. (8/10)
8) Rocket- Julgo que é a canção que melhor faz a ponte entre este 5º álbum e o antecessor 4, muito reminiscente de "1+1" e da costela retro soul desse seu maravilhoso trabalho. É o último dos temas carnais que por aqui se encontram, porventura o mais apaixonante deles todos - uma épica odisseia de 6 minutos e meio dedicada ao making love, sweet sweet love. E o que dizer do vídeo? Simplesmente deslumbrante e tão tão belo - é um dos meus favoritos e, provavelmente, o que melhor serve a sua canção. Bolas, já não se fazem temas assim... (10/10)
9) Mine- A par de outro tema que ainda não posso revelar, é o melhor momento do álbum. O primeiro minuto e meio passa por um qualquer tema de John Legend, com Beyoncé a confessar ter atravessado problemas no matrimónio e uma suposta depressão pós-parto. Mas depois Drake entra em cena - e é aí que as coisas ficam megalómanas - e de repente estamos em 2049, rodeados de R&B atmosférico, batidas africanas e hip hop pós-moderno que servem de banda sonora a juras de amor eterno. Melhor mesmo só o vídeo que o ilustra, que é de uma beleza artística impressionante. (10/10)
10) XO- Sabem aquelas canções que nos deixam "estupidamente felizes"? Costumo chamar-lhes feel good songs e esta é capaz de ser a melhor que já ouvi em muito tempo. Construída à base de teclados trémulos, bateria militar e uns quantos sintetizadores, conta com um refrão luminoso e gigantesco que seria perfeito para musicar um anúncio da Coca-Cola. Mas o melhor de tudo é saber que o homem por detrás disto é Ryan Tedder, que muito me desiludiu no ano passado e que aqui assina uma das suas melhores canções de sempre. Considera-te perdoado, meu caro. (9/10)
11) Flawless- É o "Run the World (Girls)" deste novo disco. Apesar dos sonoros e alarmantes "bow down bitches" nos induzirem em erro, "Flawless" é uma destemida e imponente ode à camaradagem feminina, com agressivas batidas de trap music e um inesperado mas triunfante sample de um ensaio da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie intitulado "We should all be feminists". E o que começou por ser uma espécie de testemunho impiedoso contra os haters desta vida, transforma-se na mãe de todos os hinos feministas. Nunca a discriminação de géneros havia sido tão bem enquadrada e explorada numa canção do universo pop. (9/10)
12) Superpower- O outro momento verdadeiramente magistral do disco - mágico, épico e absolutamente etéreo. Dup dup dup dup dup dope dup dup dup dup dup dope - assim é a toada desta canção alada, algo mística, em que Beyoncé tem a seu lado um sublime Frank Ocean e conta com Pharrell Williams na produção (a merecer o Grammy de melhor produtor, sem sombra de dúvida). Mas de que superpoder cantam? "A subtle power/ like a shark/ like a bear/ a though love". O amor, claro está - o verdadeiro, eterno e que move montanhas. Um poder que reside em todos nós e que podemos utilizar em prol de um mundo melhor. (10/10)
13) Heaven- É capaz de ser o tema que estava a faltar no repertório de Beyoncé. Pelo menos nunca antes a tinha ouvido cantar acerca da perda de um ente querido. Mas valeu a pena a espera porque é absolutamente belo - sem choradinhos ou versos lacrimejantes. O que não significa que a dor não seja profunda. Ela está lá, mas surge acompanhada de resignação e fé numa morada divina que ninguém sabe ao certo se existe, mas que gostamos de acreditar que sim. Daqui em diante vou considerá-la "sagrada e não susceptível de ouvir em qualquer estado emocional", pois deixa-me bastante triste e pensativo. (9/10)
14) Blue- Faz todo o sentido encerrar o álbum com esta faixa alusiva à luz dos olhos de Beyoncé, a sua pequena Blue Ivy - afinal de contas, foi ela que tornou possível este disco estupendo. É um maravilhoso testemunho de amor, uma fonte de vida e desejo de perdurar para todo o sempre um momento tão belo quanto este, aquele em que um ser humano tem nos seus braços a continuação da sua existência. E é com a mãe e filha de mãos dadas, rumo ao paraíso, que o disco chega ao fim. (9/10)
Dizem por aí que este álbum está para o século XXI como o Thriller esteve para o século XX. Levei cerca de um mês a compreendê-lo e a chegar à conclusão que sim - chovam aplausos, vertam-se lágrimas e lançem-se rosas, porque, de facto, estamos perante um disco magistral. Não são exagerados os elogios nem tão pouco deve ser menosprezado aquilo que Beyoncé alcançou com este 5º álbum - a total emancipação e libertação enquanto mulher e artista. E isso é belíssimo de se ver, comovente até, para um rapaz que em criança viu o seu intelecto musical desperto por canções como "Crazy in Love" e que agora, quase 11 anos volvidos, tem diante de si uma obra que veio mudar as regras do jogo e que recupera o conceito de álbum enquanto acontecimento capaz de mobilizar, inspirar e marcar gerações.
É uma artista na plenitude das suas faculdades artísticas e completamente livre que aqui se ouve. Livre de receios. Livre de preconceitos. Livre do hype. Livre e com muito para dizer. E é ouvi-la cantar acerca de amor terno, sexo selvagem, discriminação de géneros, depressão pós-parto, problemas matrimoniais, morte, bulimia e outras temáticas tais, sempre na 1º pessoa, sempre de forma crítica e honesta. E depois há também que destacar a paleta sonora de que se reveste - pop, funk, neo soul, electrónica, trap, R&B e hip hop - fruto de uma visão artística nunca antes tão aguçada e estimulada como agora e do trabalho dos fabulosos produtores que com ela colaboraram (Timbaland, Pharrell Williams, Justin Timberlake, Ryan Tedder, Boots, Jerome Harmon, Hit-Boy, entre outros). Por fim, os vídeos, de uma cinematografia e sensibilidade incríveis que muito contribuíram para a total imersão e compreensão desta experiência que ganha uma outra dimensão graças ao factor visual.
Pensei seriamente que depois do último 4 (2011) seria impossível para Beyoncé conseguir superar tão épico trabalho. E duvidei dela, como muitos outros o fizeram face à hesitação em lançar novo material, achando que se tivesse perdido a nível criativo. Estávamos todos tão enganados... Depois de ter ouvido as 14 canções, visto os 17 vídeos e o mini-documentário referente ao processo criativo, concluo que Beyoncé não só é um ser humano extraordinário, movido por um coração enorme e intenções artísticas louváveis, como acaba de se colocar num patamar absurdo de excelência que nenhum outro vulto feminino em pleno século XXI ousou alcançar. Só a maior artista da minha geração o poderia conseguir - bravo, Beyoncé, bravo.
Classificação: 9,2/10
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