REVIEW: Kelis- Food


Dona de um dos percursos mais ímpares e subestimados ao serviço do melhor R&B americano, Kelis está de volta com Food, o seu 6º álbum de originais que a vê renascer como diva neo soul, naquilo a que convém chamar mais uma aplaudida e aventurosa reeinvenção de uma carreira que já conta 15 anos e outras quantas metamorfoses. Com um título apetitoso que reflecte a sua recém-encontrada paixão pela arte dos tachos e panelas, espero encontrar nada menos do que um divino banquete para os sentidos. Venham daí os pratos, chef:

1) Breakfast- "Hey guys, are you angry? My mom made food!" A deixa é do petiz Knight Jones, o filhote da cantora, que introduz o repasto com que se começa o dia: o pequeno-almoço, naturalmente. Estão lá as vitaminas e cores saudáveis todas, traduzidas na forma de variados instrumentos de sopro e percussão, que proporcionam o veículo perfeito para a voz rica e quente de Kelis. Fornece energia e uma boa dose de felicidade, como só as grandes refeições o sabem fazer. (8/10)

2) Jerk Ribs- Passar dos cereais e torradas para umas costeletas a pingar de gordura não é tarefa para todos os estômagos. Mas a receita de Kelis é infalível: uma secção rítmica de ir aos céus e chorar por mais que só poderá ser obra de uma big band, um groove descontraído e altamente funky, e uma prestação vocal confiante e descaradamente sexy. Sem dúvida, um dos melhores pratos por ela servidos. (9/10)

3) Forever Be- Um tema esplendoroso que dissipa as nuvens cinzentas, se as houver, e traz o sol consigo para onde quer que vá. É o aqui e agora de Kelis, porque o amanhã não espera e pode já ser tarde demais - eis a caneca de chá verde para dar ânimo e coragem ao espírito. Ainda que orquestral, não é tão tradicional como os temas anteriores, contando com um ténue sintetizador de fundo. (8/10)

4) Floyd- Do alto dos seus 34 anos e como mãe solteira que é, Kelis diz querer ser arrebatada nesta valente canção de engate em que são expostos os seus atributos: "I know I don't look it, but I can cook/ I'm really pretty simple, I like what I should" - isto cantado assim num tom que rima com olhos semicerrados e lençóis de cetim, numa onda de "happy birthday, Mr. President". Uma slow jam encantadora, pois claro. (8/10)

5) Runnin- Apesar do título, a passada mantém-se vagarosa tal como no tema anterior, enquanto a temática lírica segue para campos mais macambúzios, com Kelis a demonstrar vontade de trocar a vida artística e a fama por uma mais mundana e sossegada. É um tanto e quanto moribunda, mas não chega para arruinar tão belo repasto. (7/10)

6) Hooch- É tempo de uma cachaça, presumo eu, servida com pedras de gelo num cenário exótico onde estão 40º à sombra. Kelis soa perigosamente sensual, suportada por coros ofegantes e paradisíacos e muito bem acompanhada por um estupendo bando de músicos que me trazem à memória as proezas rítmicas dos The Roots. É soul tropical, dengosa e sublime. (9/10)

7) Cobbler- Hora da sobremesa com um delicioso bolo de frutas e sotaque... português! Nos segundos introdutórios é possível ouvir Kelis a soltar um  "fala a sério, gatinha linda!", para grande surpresa minha que desconhecia o seu poliglotismo. "Cobbler" é do mais ritmado que por aqui se encontra, descaradamente funky e exótico, com a cantora a versar acerca de um homem que a deixou a salivar por mais. Só fico na dúvida se a proeza vocal demonstrada nos segundos finais - uma nota aguda capaz de rachar vidro - lhe pertence a ela ou não. (8/10)

8) Bless the Telephone- Não estava a prevê-lo, mas porque não um momento intimista a sós com a guitarra acústica? Se há alguém que o pode fazer sem correr o risco de desvirtuar o caminho traçado até então, esse alguém será Kelis. É um tema encantador partilhado a dois, sendo que o parceiro dá pelo nome de Sal Masekela (muito prazer) e o dueto gira à volta de como um telefonema da pessoa certa, feito na hora certa, pode fazer maravilhas pelo estado da alma. (8/10)

9) Friday Fish Fry- Sexta-feira e peixe frito para mim não rimam. Por isso é um pouco a medo que entro na banca de Kelis - só gostando muito dela, não é? - para provar a sua iguaria. Nem chego a fazer cara feia porque ela não me dá hipótese: entre um coro ofegante/sensualão que canta incessantemente "uh-ah-uh-ah", um ror de cordas e metais que transpiram groove e uma prestação estonteante e tremendamente assanhada da sua parte, semelhante à entrega vocal de "Jerk Ribs", vou ao céu e não sei se volto mais. É todo um festival de sabores na minha boca e ouvidos. Best fish ever. (9/10)

10) Change- Pode ser entendida como a tentativa de Kelis de figurar na banda-sonora de James Bond se a sua última aventura cinematográfica decorresse no México e se este se visse envolvido num conflito federal com mariachis à mistura. Parece rebuscado, não? Pois também o é a canção em si. Exige várias audições para a compreendermos e entrarmos no seu espírito - aprecio o risco, mas a execução deixa um pouco a desejar. Demasiado estranha e pouco apelativa. (7/10)

11) Rumble- Get ready to rumble! Ao 11º tema Kelis aborda o divórcio com o rapper Nas e a possibilidade - real ou fíctícia? - de acrescentar mais uns quantos capítulos a uma história que parece ainda não ter acabado ("We got so much history/ I hurt you, you hurt me/ no, we don't need therapy/ what I need is you here") - vá-se lá entender estas coisas dos casais! Musicalmente é um festim triunfal de trompas e piano e recebe uma das interpretações vocais mais fortes e inspiradas do disco. (8/10)

12) Biscuits n' Gravy- Biscoitos com molho não é refeição que se sirva, mas por esta altura já estou ciente de que qualquer comida servida por Kelis vale a pena arriscar o dente e desafiar qualquer noção de bom senso. E esta não é excepção. A combinação inusitada deve-se à sensação de desnorte por ela expressa na letra ("I don't know where I'm going/ quite a story where I been/ the map seems all wrong and my compass says the end"). A canção termina de forma mais luminosa, com o sol no horizonte e a promessa de regeneração. (8/10)

13) Dreamer- O álbum aproxima-se do fim apontando coordenadas para uma galáxia distante, envergando vestes celestiais revestidas de R&B futurístico e algum trip hop à mistura. Quer-me parecer que um vídeo para isto seria muito na linha de Bedtime Stories. Certo, um desfecho imprevisível para um disco irresistível. (8/10)

É extremamente gratificante e libertador para um artista quando chega a um patamar da sua carreira em que já não tem nada a provar nem nada a perder, e pode fazer a música que sempre quis sem ter que ceder a pressões editoriais ou incorrer por caminhos artísticos menos nobres. É precisamente isso que acontece com Kelis neste Food, um disco orgânico, rico de texturas, aromas e tonalidades, de apuradas sensibilidades e tempero único, cujo sabor é um regalo para os cinco sentidos - sem dúvida o melhor prato que já confeccionou ao longo da sua carreira. 

Tem nuances soul, funk, afrobeat, R&B e electrónicas, sempre numa onda contemporânea, e apresenta-as de forma inventiva e coesa, como se de uma verdadeira refeição se tratasse e cada prato - tema, neste caso - fosse uma descoberta e proporcionasse maravilhas gastronómicas. Comercialmente falando, teve um ímpacto mísero já expectável, ou não fosse ela uma das artistas mais subestimadas da sua geração, mas nada disso importa quando o preparado que nos chega aos ouvidos tem mais substância do que a grande maioria do fast food musical que por aí anda e foi cozinhado com amor e carinho pela mão de uma artista cada vez mais refinada e experiente. Parabéns à chef.

Classificação: 8,1/10

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